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O Vaqueiro

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Não é simples literatura dizer que a gente do Nordeste constitui grupo específico na ainda indecisa etnia brasileira. Na realidade o nordestino é diferente, e a geografia por certo explica a diferença. Habita uma região de facies própria, inconfundível, que o obriga a diferençar-se. As carências da terra forçam a diferenciação do seu tipo racial, dos costumes, dos processos de lutar e viver. A luta na vida do Nordeste é fundamental, é pressuposto. Desde o preparo do habitat, pois a Natureza lho deu incompleto. Se é certo, como se tem repetido, que "Deus fez o mundo e o holandês fez a Holanda", também aqui o nordestino amassa e cozinha o seu meio físico que, por sua vez, lhe prepara as qualidades morais da audácia, do destemor, da tenacidade, da intransigência, do triunfo. Talvez se dissesse melhor - da sobrevivência.

Formou-se, aqui, na grande região semi-árida, um povo forte, que o desconforto e o abandono oficial não têm conseguido destruir.

Das praias aos sertões ínvios, sozinho, esse povo luta, vence e, quando os recursos da vitória lhe escasseiam, emigra a vai vencer lá fora. Por isso mesmo se igualam os tipos formadores dessa gente, nivelados no sofrimento comum dos tempos inditosos e, também, na felicidade das épocas propícias.

O escritor Sílvio Júlio, que dedicou às letras nacionais um livro sobre Terra a Povo do Ceará, apreciou habilmente este aspecto nivelador e regista a sua impressão. "Em São Paulo, o matuto é do mato, e o litorâneo dele difere. No Rio Grande do Sul, o gaúcho é do pampa e o habitante das costas não se parece muito com ele. Existe, entre o homem do interior e o dos portos, no Brasil, a distância verificada entre dórios a jônios. Uns restritos, outros universais. Aqueles, localistas; estes despreocupados do exclusivismo jingoísta. Faz exceção o Ceará, que prolonga o sertão até o mar, unindo, idealmente, o vaqueiro e o jangadeiro. Tire-se o cavalo ao vaqueiro, dê-se-lhe a jangada, e a sua alma arrojada não mudará. Tire-se a jangada ao jangadeiro, dê-se-lhe o cavalo, o seu caráter será o mesmo. O sertanejo é o jangadeiro do sertão. Ambos calados a teimosos, ambos desprezadores dos perigos, ambos sujeitos a um destino denso e escuro, que os torna fortes para o martírio e resignados como santos".

A despeito desta assemelhação ecológica, não os olhamos, contudo, igualmente, numa lastimável miopia.

O homem do mar, mais feliz, logrou as atenções mais fáceis, mais à flor, e a sua jangada o fez um símbolo. O frágil lenho, que teria o destino de conduzir o Guerreiro Branco e o filho e o cão fiel, na admirável concepção de Alencar, querendo traduzir a predestinação do nordestino à expatriação ainda no berço, fez do jangadeiro o brazão da nossa heráldica sentimental. E o motivo do quadro se requintou na moldura que lhe oferecem os "verdes mares bravios" a as "praias ensombradas de coqueiros", exagerando-o em nossa sensibilidade superficial. E passou então a jangada, e com ela o jangadeiro, à sublimação estética das pinturas a dos versos, das páginas literárias e das delícias fotográficas, das reportagens sensacionais a dos filmes da cinematografia.


E nunca mais a jangada saiu da lira dos poetas a dos pincéis dos pintores, das toadas dos cantos melancólicos, na síntese afetiva da quadrinha célebre:

"Minha jangada de vela

que vento queres levar?

- De dia vento de terra,

De noite vento do mar?"

tão delicadamente explorada pelo nosso Béranger das Lendas e Canções Populares - Juvenal Galeno.

* * *

Mas os nossos arroubos de admiração ao jangadeiro têm-nos levado à injustiça de esquecer o vaqueiro, a mais legítima configuração do homem sertanejo. E cabe-nos a nós todos o movimento reparador para que a nossa omissão não concretize uma injúria. Incumbe-nos repor o vaqueiro no seu pedestal de merecimentos superiores, que objetivam os cultos cívicos. Será dever nosso cultivar o apreço ao vaqueiro e sem demora erguer-lhe, na praça pública, o bronze do nosso mais alto reconhecimento. Porque ao vaqueiro é que devemos a nossa formação de povo através de três séculos de evolução histórica.

Sabemos como se fez a penetração civilizadora do Nordeste, baseada no pastoreio. Do São Francisco ao Parnaíba cadinhou-se uma civilização típica, fundamentada nos "currais" e os currais fundamentados na intrepidez e perseverança do homem de chapéu de couro. A economia da região caracterizou-se, pois, na criação da gado, e toda a vida política a social refletiu, necessariamente, esse suporte econômico.

Civilização do couro, chamou mui precisamente o sempre preciso Capistrano de Abreu, porque, na realidade, quase tudo era tirado da exploração do boi: "De couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, a mais tarde cama para os partos; de couro todas as cordas, a borracha de carregar água, o mocó ou alforje para levar comida, a maca para guardar roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em viagem, as bainhas de faca, as bruacas a surrões, a roupa de entrar no mato, os banguês para cortume ou para apurar sal; para os açudes, o material de aterro era levado em couros puxados por juntas de bois que calcavam a terra com o seu peso; em couro pisava-se tabaco para o nariz."

Encheu-se o Nordeste de fazendas de criar a tudo nelas se fazia quase exclusivamente por vaqueiro ou com o vaqueiro.

E os vaqueiros iam-se transformando em donos de fazendas, criando os filhos, educando-os, transformando-os em doutores, padres, comerciantes e quantos mais que consolidaram a nossa estrutura econômico-cultural.

Somos, assim, produtos do vaqueiro, e quantos de nós não nasceram, como eu, de pais vaqueiros ou quase-vaqueiros, em camas banguês de couro!

Foi Euclides da Cunha, o insuperável Euclides, quem descobriu o vaqueiro para o conhecimento e estudo dos sociólogos, e o figurou com as tintas certas.

Afirmou, para incômodo e desapontamento de alguns sulistas finos, que "o sertanejo é antes de tudo um forte" e que o abandono em que jazeram os homens do sertão do Norte "teve função benéfica, pois que os libertou da adaptação penosíssima a um estágio social superior simultaneamente , evitou que descambassem para as aberrações a vícios dos meios adiantados".

"Sem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral" o sertanejo é um tipo que fixa uma fortaleza, desgraciosa e torta, mas resistente, indobrável. E o genial escritor de Os Sertões o põe em paralelo com outros, num confronto indiscutível entre o vaqueiro do Nordeste e o vaquejador do Sul. Este, "filho dos plainos sem fins, afeito a carreiras fáceis nos pampas a adaptado a uma natureza carinhosa que o encanta, apresentando feição mais cavaleirosa e atraente - é o gaúcho, cujas vestes são um traje de festa", amplas bombachas que não se estragam nos espinhos dilaceradores das caatingas. Aquele, ao contrário, "criou-se em condições opostas, em uma intermitência, raro perturbada, de horas felizes e horas cruéis", "fazendo-se homem quase sem ter sido criança".

Foi este homem assim quem, destemidamente, forjou a colonização do Nordeste e a mantém até hoje. Venceu o índio, venceu a agrestia do ambiente, venceu as feras que o cercavam em cada instante, venceu a falta de ajuda e, mimado do amor da mulher e dos filhos e do amor ao seu cavalo campeiro a ao cachorro amigo, soube plantar na soalheira nordestina os elementos indestrutíveis de uma brasilidade sem jaça, porventura menos afeita aos ademanes dos punhos de rendas, porém sincera e forte no apego da gleba, cantada nas horas dos seus afadigados lazeres ao som dolente da viola, toda melodia e ternura, musicalmente rudimentar e simples, mas eloqüente nas suas cantigas de amor e na toada vibrante dos desafios improvisados.

Recuado das cidades do litoral, estas não o enxergam, os visitantes não o vêem, não vêem a sua bravura, a sua coragem nas carreiras brutais de mato a eito, não o percebem, sequer, porque ele não se oferece à contemplação dos artistas que o desconhecem, não se mostra, como se mostram as jangadas, às vistas comuns, vaidosas das suas proezas de algumas milhas oceano a dentro, correndo ao dorso das águas ondulantes.

O seu mundo, o mundo do vaqueiro, é uma oficina de trabalho em silêncio, que mal se pressente.

Mas lá está sendo caldeada a têmpera de uma gente construtiva no afã de uma realização dadivosa. Gente que não pode continuar esquecida, ignorada, sem cantos de cigarras para atrair os olhos indiferentes dos que só sabem ver as delícias cômodas, macias, de uma existência de superfície.

Tomemos, pois, aos ombros a tarefa da reparação da injúria que se tem feito ao homem do mato, a vamos resolutamente colocá-lo no destaque que merece, reabilitados nós, e não ele, da falta de não tê-lo homenageado, até agora, na devida conta.

Que resplenda aos espíritos justos e no valor das suas linhas a figura possante do vaqueiro.


"Escrevi isso há tempo e vejo hoje que o Vaqueiro já é fotografado, respeitado o seu esforço, colocada a sua figura em estátuas na praça pública." (Comentário de Raimundo Girão na transcrição deste artigo no livro Palestina, uma Agulha e as Saudades.)