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Geraldo da Silva Nobre - Vocação e Formação de um Historiador

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No livro de memórias Palestina, uma Agulha a as Saudades, publicado em 1984, Raimundo Girão forneceu poucos esclarecimentos a respeito de sua vocação para os estudos históricos e das circunstâncias em que desenvolveu sua atividade, uma das mais profícuas contribuições à historiografia cearense, não obstante uma vida intensa também na administração pública, no magistério e nas associações, notadamente no Instituto do Ceará e na Academia Cearense de Letras. Se menores os encargos, certamente mais vasta e valiosa teria sido a produção, na mencionada área de estudos, desse ilustre conterrâneo que, ao falecer, prestes a completar 88 anos de idade, se empenhava em preparar a História Genealógica do Ceará e, em seguida, sobrando lhe tempo e energia, dar execução a outros projetos havia muito acalentados, porém interrompidos pela pressão das responsabilidades imediatas.

Parece nos que às inteligências privilegiadas, como a de Raimundo Girão, os estudos históricos são os mais viáveis, primeiro porque as condições mostram se desfavoráveis sobretudo quanto aos de outras áreas, e, segundo, pela tradição de interesse relativo ao passado, expressa na continuidade das várias gerações de historiadores cearenses, desde a de Tristão de Alencar Araripe, Pedro Theberge, Senador Pompeu e João Brígido até a da atualidade, passando pela de Paulino Nogueira, Barão de Studart, Antônio Bezerra e Perdigão de Oliveira, e, seguindo se a esta, a de Eusébio de Sousa e Hugo Vítor, alienígenas que o Ceará atraiu e neles contou com dedicados filhos adotivos, compartilhando com Carlos Studart Filho a responsabilidade de manter vivo aquele interesse pela História deste Estado.

Em contato com o denodado grupo de estudiosos do trintênio de 1920 1950, aproximadamente, cuja colaboração na imprensa diária era constante, admite se que Raimundo Girão tivesse despertado a sua curiosidade pelo passado, em consonância, aliás, com as fortes impressões nele causadas, ainda na adolescência, pela inesquecível jornada de 1912, em Fortaleza, quando o povo, estuante de civismo, depusera da Presidência do Estado o Comendador Nogueira Acióli.

Ao adquirir, com Antônio Martins Filho, o antigo Almanaque do Ceará, fundado por João Câmara e então de propriedade de Silveira Marinho, o interesse de Raimundo Girão pela História registraria um grande impulso, como ficou demonstrado ao editar, igualmente em parceria com o futuro Reitor da Universidade do Ceará (UFC), o importantíssimo documentário O Ceará, fonte de consulta insubstituível para quantos procuram informações precisas a respeito de qualquer aspecto da realidade cearense, a exemplo do famoso Dicionário do então padre Tomás Pompeu e dos alentados estudos O Ceará do Começo do Século Vinte e O Ceará do Centenário da Independência, ambos do segundo Tomás Pompeu, digno continuador de seu ilustre pai, aqui mencionado.

Uma influência notada na produção histórica de Raimundo Girão, além das já mencionadas, foi a de Gustavo Barroso, o memorialista cearense nascido exatamente há cem anos atrás, em Fortaleza, cidade cujas peculiaridades revelou em escritos emotivos, dos quais tem se o continuador principal no autor dessa monografia de mérito inexcedível, dentre todas já publicadas sobre a capital cearense, a que traz originalíssimo título Geografia Estética de Fortaleza, aparecida em 1959 e, segunda vez, em 1979.

Ressalte se que, anteriormente, em 1945, Raimundo Girão já publicara o trabalho com que se inscrevera em concurso promovido pelo Departamento Estadual de Imprensa a Propaganda, sobre a evolução administrativa e urbanística da cidade, aliás, muito devedora de seus serviços prestados quando prefeito municipal, como auxiliar do então Interventor do Ceará Major Roberto Carneiro de Mendonça.

Seria devida, por sinal, à preocupação do Raimundo Girão em esclarecer as origens de Fortaleza, a única discussão em que ele se envolveu, contrariando uma linha impecável de comedimento e de respeito à opinião alheia, não lhe tendo esta perdoado a idéia central de seu livro Matias Beck   Fundador de Fortaleza. Na verdade, pelo temperamento, ele evitou sempre a polêmica, embora intransigente a respeito de verdades históricas consideradas essenciais, e jamais se arvorou de revisionista da História do Ceará, preocupando se com preencher lacunas existentes, de maneira a lhe serem devidos trabalhos pioneiros, como a História Econômica do Ceará, de 1947, A Abolição no Ceará, de 1956, a História da Faculdade de Direito do Ceará, de 1960, e A Academia de 1894, de 1975.

A Geografia Estética de Fortaleza e a História Econômica do Ceará são, indiscutivelmente, as produções de maior mérito de Raimundo Girão e bastariam para assegurar lhe o conceito de um dos maiores historiadores cearenses, tanto quanto atribuído a Antônio Bezerra por Algumas Origens do Ceará e Notas de Viagem, títulos, todos estes, a constar de uma seleção de vinte obras clássicas da historiografia cearense, das mais ricas de trabalhos valiosos, no Brasil.

A História da Faculdade de Direito do Ceará teve a inspirá la, evidentemente, a do antigo curso jurídico de Olinda, escrita por Clóvis Beviláqua, sem se tratar, no entanto, de imitação, pois a do insigne mestre natural da serra da Ibiapaba alude a uma instituição de maior vulto, em correspondência com um período em que ocorreram mudanças mais freqüentes, e, para ter a abrangência devida, restringiu o conteúdo em assuntos aos quais Raimundo Girão pôde dar um tratamento bem menos sucinto, aproveitando o volume de informações disponíveis.

O exercício do magistério direcionou, em parte, a historiografia de Raimundo Girão, com o cuidado, muito louvável, de incutir o interesse pelos estudos históricos, conforme prova a Pequena História do Ceará, de 1953, com reedições de 1962 a 1971, e, também, a História Econômica Geral e do Brasil, destinada aos estudantes matriculados na cadeira em que ministrava aulas, da antiga Escola de Administração do Ceará (1964).

Grande amigo de Soares Bulcão, um dos mais dedicados pesquisadores das origens das famílias cearenses, Raimundo Girão teve na genealogia uma de suas predileções, iniciando com a publicação, em 1942, do trabalho sobre O Comendador Machado a sua Descendência, seguindo se, em 1967, Montes, Machados, Girões, resultante de acréscimos a um estudo publicado, em folheto, também na década 1940 1949, e, por último, Famílias de Fortaleza. Na Revista do Instituto do Ceará, com a epígrafe O Abraão do Jaguaribe, iniciou a enumeração dos descendentes de Luciano Cardoso de Vargas, um dos povoadores da região jaguaribana, porém, essa contribuição ficou incompleta, não tendo o autor a oportunidade de incluí la, completa, na História Genealógica Cearense, como pretendia, porém a morte não lhe permitiu.

O propósito de Raimundo Girão era muito vasto, tendo por objetivo reconstituir o processo de formação da gente cearense, e datava de 1949, quando publicou Bandeirismo Baiano e Povoamento do Ceará, com um embasamento étnico e geográfico, de preferência à análise de cunho sociológico, de modo a distanciar se, na metodologia, de Capistrano de Abreu, o grande historiador nascido em Maranguape, a quem a ciência histórica deve os maiores serviços no Brasil, ressentidos, no entanto, os estudiosos da pouca atenção por ele dada aos documentos de sacristia e de cartório, decisivos, em muitas circunstâncias, para elucidar problemas interpostos no trabalho de assimilar as relações de causa e efeito, complexas e mutáveis, determinantes, ou condicionantes do referido processo de formação.

(D.O. Letras   Ano 111 n° 12 – julho / setembro 1988)

Geraldo da Silva Nobre. Escritor, historiador, professor aposentado da UFC e membro do Instituto do Ceará.