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Joaryvar Macedo - Raimundo Girão - as Grandes Sínteses e o Apego ao Ceará

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Tivesse de definir Raimundo Girão, o homem de letras, o historiador, o intelectual, enfim, considerando a estrutura de suas obras, notadamente as de cunho histórico, e eu o conceituaria como o homem das grandes sínteses.

Em boa verdade, firmou se ele, pela diversidade dos caminhos percorridos na seara da cultura intelectual, qual polígrafo dos mais admiráveis e fecundos. Efetivamente, sua produção, arrolando centenas de artigos e estudos, estampados em periódicos, bem como diversas plaquetas ou folhetos, e mais de trinta livros, propriamente ditos, além de alguns por ele organizados, abrange áreas diversificadas do saber humano, como o Direito, a Crítica Literária, a Memorialística, a Economia, a Historiografia, com os ramos do conhecimento que as subsidiam, a exemplo da Biografia e da Genealogia.

Sobretudo à Historiografia, mormente à do Ceará, emprestou Raimundo Girão suas robustas energias, uma imensa capacidade de trabalho e um extraordinário poder de síntese, para, pacientemente, fabricar e limar verdadeiras filigranas, originárias de um intelecto inquestionavelmente privilegiado. Na realidade, colhendo, diuturnamente, em laboriosas perquirições, os dados elementares para a reconstituição do complexo da nossa história, tornara se no seu mais abalizado intérprete contemporâneo, atingindo mesmo o vértice dos conhecimentos históricos. Por isso, sem pestanejar, na minha oração de posse da Academia Cearense de Letras, chamei-lhe pontifex maximus da atual historiografia cearense.

Restringindo nos à esfera específica da sua predileção, a História, cingindo nos mais ainda, à do Ceará, e examinando, mesmo de relance, os títulos principais de sua contribuição neste particular, pelo conteúdo e pela extensão, aferimos a grandeza e a relevância de suas bem acabadas sínteses, refletindo lhe todas elas o apego à terra de berço, por nenhum outro superado. E pode se afirmar, sem o mais mínimo risco de equívoco, que Raimundo Girão encarnava o arquétipo de cearense. Era ele a personificação mesma do Ceará.

Se ninguém se equiparou ao Barão de Studart, na paciente, afanosa e altamente meritória tarefa de coligir documentos, achegas e dados para a História do Ceará, ninguém, até hoje, se avantajou a Raimundo Girão, no grandioso cometimento de, pela obstinação na pesquisa, no estudo, na análise e na interpretação, recompor esta mesma História.

Sua obra O Ceará, elaborada de parceria com Antônio Martins Filho, forma um completo repertório de minudentes e preciosas informações a respeito do nosso Estado, sob os aspectos histórico e geográfico, através, inclusive, da abordagem de cada um dos municípios cearenses. Por isso e por focalizar o Ceará nos seus mais variados ângulos, pela inserção, outrossim, de numerosos ensaios da autoria de intelectuais conterrâneos, tornou se a sobredita obra uma das mais importantes fontes de consulta para os estudiosos. Já a sua Pequena História do Ceará, porquanto bem planejada, bem esquematizada e elaborada cientificamente, encerra, numa síntese precisa, toda a história cearense, desde a pré história até os dias correntes. Posteriormente, com base neste estudo e recheado de novos elementos e enriquecedores ingredientes, surgia um volume bastante mais alentado a sobretudo abrangente. Nele, sob o título de Evolução Histórica Cearense, dissecou Raimundo Girão, competente e exaustivamente, a história integral do Estado. Trata se, irrecusavelmente, de obra monumental e definitiva.

Outra publicação da mais alta valia cultural, de mérito indiscutível, da autoria de Raimundo Girão, a História Econômica do Ceará, compreendia o processo da economia da terra, a partir dos primórdios, com o povoamento do solo cearense. De não menor valor e merecimento seria A Abolição no Ceará, através de cujas páginas, faz ele reviver o mais eloqüente acontecimento da nossa história social e também política. De valor e merecimento iguais se enroupa este outro trabalho notável, Os Municípios Cearenses e seus Distritos. Aqui, à semelhança do citado O Ceará, excedem os informes acerca de cada uma das nossas comunas. Acima de tudo, entretanto, a marca do pioneirismo, no estudo cuidadoso de todas as subdivisões das mencionadas comunas, revela se grandemente valorizadora da obra.

Filho amantíssimo deste Ceará requeimado de sol, muito natural seria Raimundo Girão dedicar se, ainda, à pesquisa e ao estudo em torno da Capital. Desse afã resultaram valiosas monografias e duas obras fundamentais. Com efeito, A Cidade do Pajeú epigrafou um tema polêmico, já por ele anteriormente tratado em Matias Beck   Fundador de Fortaleza; a fundação da metrópole cearense. Desta feita, recompondo o assunto e dando lhe nova estrutura, traçou ele, com percuciência de mestre, a gênese da velha Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Já a Geografia Estética de Fortaleza, oferecendo uma visão global da cidade, a começar das suas origens, condensa lhe a geografia e a história ou, mais precisamente, a crônica histórica, numa projeção inteira da capital cearense de antanho e da atualidade.

Duas instituições tradicionais, de profunda influência na vida cultural do Estado, mereceram a solicitude do espírito investigador de Raimundo Girão, que lhes descreveu, em sínteses primorosas, a marcha da existência supinamente benfazeja. Na verdade, A Academia de 1894 condensa a história da mais antiga sociedade de homens devotados à literatura em terras brasileiras, a outrora Academia Cearense, depois, Academia Cearense de Letras. Por sua vez, a História da Faculdade de Direito do Ceará apresenta uma visão geral do nosso primeiro estabelecimento de instrução superior, com todo o seu influxo na formação intelectual cearense.

Além das supracitadas, do poder de síntese de Raimundo Girão, do seu irrestrito amor à terra onde nasceu e da sua capacidade realizadora, vieram à luz da publicidade diversas outras obras e monografias, enfocando, ainda, o Ceará, quer sob o aspecto histórico, quer sob outras facetas. São trabalhos da autoria dele ou por ele organizados, sempre no sentido de valorização da gleba natal e dos vultos de relevo que a engrandeceram: Vocabulário Popular Cearense; Cidade de Fortaleza; Bandeirismo Baiano e Povoamento do Ceará; Coronel Tibúrcio Cavalcânti; Educandários de Fortaleza; Guia Turístico da Cidade de Fortaleza; Montes, Machados, Girões; Uma Dignidade Militar; Famílias de Fortaleza; Botânica Cearense na Obra de Alencar e Caminhos de Iracema; Bichos Cearenses na Obra de Alencar; O Senador Pompeu; Eduardo Henrique Girão; Fortaleza e a Crônica Histórica; Antologia Cearense; A Marcha do Povoamento do Vale do Jaguaribe; Falas Acadêmicas; Dicionário da Literatura Cearense e outros.

No referente ao Dicionário da Literatura Cearense (em co autoria com Maria da Conceição Sousa), preparado e publicado já no declínio da vida do consumado historiador, poder se ia assegurar haver sido esta obra de envergadura o coroamento da sua luminosa trajetória no mundo das letras.

Luminosa a carreira de Raimundo Girão, neste setor da atividade humana, o foi, de fato, como nos demais por ele perlustrados.

A propósito, quiçá não seja ocioso afirmar que o Ceará, no decurso da sua vida cultural, entre seus estudiosos, possui sempre quem merecesse o privilégio de ser havido por sábio, na mais legítima acepção deste termo.

A este respeito, iniciando uma como dinastia intelectual, num passado mais remoto, Tomás Pompeu de Sousa Brasil, o Senador, pontificou qual figura da maior projeção cultural. Posteriormente, brilhando no mesmo âmbito, lado a lado de Guilherme Studart, o Barão, vulto de superior destaque na cultura coestaduana, acentuadamente em face do vivíssimo entusiasmo pelos estudos históricos, Tomás Pompeu de Sousa Brasil, filho do Senador, por força da erudição de suas obras, chegou a ser cognominado "o sol das nossas letras". Depois, outro autêntico humanista, Th. Pompeu Sobrinho, por conta do peso e da medida da sua bagagem, passou a desfrutar da reputação de uma das mais fulgurantes inteligências cearenses.

O conceito de sábio que estas notáveis cerebrações patrícias empalmaram e se fizeram, nas respectivas épocas, os representantes máximos da cultura cearense, caberia, nas últimas décadas e com inteira eqüidade, a Raimundo Girão.

A diversificação e nomeadamente a inconcussa qualidade da produção intelectual do conspícuo historiógrafo, que nunca deixou o Ceará, com todas as veras por ele amado, poderiam ter lhe ensejado muito mais ampla dimensão ao nome. E, se tal não se deu, no meu entendimento, deve se isto a certa parcimônia provinciana da divulgação dos valores reais da inteligência cearense. Não fora esta circunstância, o nome de Raimundo Girão haveria granjeado, porventura, a mesma ressonância que lograram um José Américo de Almeida, vivendo na Paraíba, um Gilberto Freyre, arraigado em Pernambuco, ou um Luís da Câmara Cascudo, de pés fincados no Rio Grande do Norte.

A propósito, quando visitei Câmara Cascudo, na capital potiguar, um ano antes do seu desenlace, à despedida, sua gentilíssima esposa, dona Dáhlia, me apresentou o caderno de impressões dos visitantes. Dizendo, então, da minha ventura por encontrar me, uma vez mais, por sinal a última, com aquele sábio, concluí meu breve registro com estas palavras: "Luís da Câmara Cascudo é um monumento vivo da nossa cultura".

Por igual, com relação ao sábio conterrâneo, objeto destas ligeiras considerações, jamais me temeria de formular idêntica assertiva. Raimundo Girão era, realmente, um monumento vivo da nossa cultura. Sim, porquanto suas grandes sínteses, ora postas em foco, trazem o sinete, inconfundível e perene, da legítima sabedoria em torno do complexo cultural de uma terra e de um povo, por ele idolatrado, sem reservas, com todo o vigor do seu espírito de cearense protótipo.

(D. O. Letras   Ano 111 n° 12 – julho / setembro 1988)

Joaryvar Macedo. Escritor, foi Secretário da Cultura do Estado do Ceará, membro da Academia Cearense de Letras e do Instituto do Ceará