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Blanchard Girão - O Ceará e os Girões sem Raimundo

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Raimundo Girão deixou-nos um vazio afetivo e um vácuo de liderança. Ele resumia, na sua grandeza moral e no zelo pela preservação da nossa linhagem consangüínea, todos os merecimentos que ornamentam a nossa família, à qual me integro pelo lado materno. Aprendi a admirá-lo desde a meninice, quando seu nome já se aureolava na vida pública cearense, chegando, ainda muito jovem, a cargos como o de Prefeito de Fortaleza. Sem ter com ele maior aproximação, nunca tendo sequer freqüentado-lhe a casa, pude contudo dimensionar a importância de seu papel em nível social e, particularmente, no plano familiar. Não diria que era ele "o orgulho" da família, mas o fanal, aquela resplendência que nos dava mais afirmação no contexto da comunidade a que pertencíamos. "Girão? indagavam-me muitas vezes as pessoas: o que você é do Raimundo?" O Raimundo, portanto, era a luz mais cintilante, referencial mais forte de toda a progênie numerosa que um audaz lusitano plantou algum dia em terras brasilianas.

Nunca me vali dessa condição de parentesco para superar as barreiras que a vida colocou em meu caminho. Mas como e com que satisfação eu respondia aos que desejavam saber: "sou primo dele". Eu pressentia, no olhar do averiguador, um endosso, uma espécie de "muito bem", de aprovação ao meu currículo sumário.

Se não privei da intimidade de Raimundo, tive a alegria de conviver, por alguns anos, com seu pai, o Tio Souza, irmão de minha avó Felícia. Souza Girão morava vizinho a nós e costumava vir, à noite, nas suas poucas concessões ao lazer, bater um papo com meu pai. E carinhosamente me aplaudia ao ver-me debruçado sobre os deveres escolares. Gostava de repetir a frase que me acalentava o ego infantil: "esse menino vai longe...!"

Tio Souza era de estatura física pequenina, como Raimundo, mas de uma estrutura de dignidade e inteligência gigantesca. Os que com ele conviveram no fórum, onde foi por muitos anos Escrivão do Crime, respeitavam-no pela sua sapiência jurídica, sem jamais haver freqüentado uma escola de Direito. Mas o homem inteligente, que dominava, como poucos, os Códigos Penais, jamais renunciara às suas origens sertanejas. Acompanhei-o diversas vezes no trabalho de alimentar a vaquinha que conservava no quintal de sua casa na Avenida João Pessoa e vi-o, no amanhecer, plantando ou colhendo nas pequenas áreas que lhe sobravam naquele trecho da cidade, onde foi um dos pioneiros.

Raimundo herdou do pai não apenas a semelhança física, mas a plenitude da inteligência e a dedicação ao trabalho. Tal como Tio Souza, Raimundo consumiu seus últimos resquícios de força na realização daquilo que era o seu chamamento maior, o trabalho, na pesquisa histórica, procurando descobrir, para preservar, a memória de sua família, de seu povo, de suas terras.

Poucos dias antes de hospitalizar-se, esteve comigo na Secretaria de Cultura. Pediu-me para vê-lo embaixo. As pernas cansadas o desanimavam a subir os muitos lances da escada. Já lhe levava a resposta. O livro que preparara, com desvelo, para assinalar o centenário da abolição da escravatura negra - "Da Senzala Para os Salões" - já estava pronto. Ia dar-lhe a boa nova, mas ele se inteirara antes na Imprensa Oficial, trazendo orgulhoso um dos primeiros exemplares para mostrar-me. O objetivo da visita, porém, era outro. Estava empenhado em novas pesquisas, num projeto que reclamava o apoio de alguns órgãos da Secretaria, como o Arquivo Público. Tracei com ele um plano de ação para ajudá-lo. Mas logo vim a saber dos problemas que o alcançaram, quase simultâneos aos que também me atingiram a saúde.

Curioso detalhe. Vivemos algumas semanas sob idêntica preocupação. Ele indagara de um dos nossos médicos comuns, o grande e generoso primo Eduílton, a respeito de minha situação. E eu a procurar, pelo mesmo intermediário, saber os prognósticos da sua condição, que teve o desfecho que temíamos. Ainda pude ir ao hospital, onde o encontrei sonolento, num quase torpor. Não quis incomodá-lo. Mas vendo-o à distância, inerte, pude avaliar toda a extensão da sua inquietude, ali deitado, impedido de dar prosseguimento a tantos outros projetos que a sua lucidez absoluta, aos 87 anos de existência, concebiam e faziam fervilhar seu cérebro privilegiado.

Os Girões perderam a sua luz-guia. E o Ceará, o mais diligente e irrequieto esmiuçador de suas raízes, aquele que soube ir, sem descanso, ao poço inesgotável da História para oferecer às novas gerações os rumos mais seguros à construção da nossa identidade de povo. Raimundo Girão tinha rigorosa certeza de que não podem existir presente e futuro sem os alicerces do passado. Assim pensando, entregou-se de corpo e espírito a essa busca, deixando-nos um legado incomparável, hoje a melhor e maior fonte de conhecimentos acerca da nossa Terra e de sua gente.

Poucos cearenses se devotaram tanto ao estudo e se envolveram na pesquisa histórica quanto Raimundo Girão. Sua obra, contudo, deve continuar. Há filhos, irmãos e netos que ornam a estirpe que ele dignificou pelo talento, pela cultura, pela bondade e, muito especialmente, pela honradez.

A mim, mais do que nunca, cabe repetir aos perquiridores: "Girão? O que é do Raimundo?" - "Primo, com muito orgulho".

(Jornal do Dórian, ed. de 03.08. l 988)

Blanchard Girão. Jornalista, advogado, escritor, ex-Secretário de Cultura do Ceará.