Raimundo Girão e o Sítio Passaré

(Trechos retirados do livro Memória do Sítio Passaré, de Célvio Brasil Girão (org.) Fortaleza Expressão Gráfica, 2008. 401 p. Ilustrada.

  Memória do Sítio Passaré

 

 

 

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RAIMUNDO GIRÃO E O PASSARÉ

Célvio Brasil Girão*

...Além da família meu pai tinha outras paixões. O Passaré, que ele dizia ser o “refúgio das minhas covardias”, era uma delas. O seu sítio nas cercanias da cidade era e continua sendo um lugar paradisíaco e quase que sagrado para a nossa família. De grande beleza, com sua vegetação natural exuberante e com sua lagoa onde ele costumava gozar seus banhos, e onde, nas suas palavras “as jaçanãs esvoejam brincalhonas e os aguapés soltam o perfume as suas pétalas brancas”.

No Passaré Brasil Girão como eu o batizei em despretensiosa composição musical, os braços de meu pai modificaram parte do natural, criando pomares e bosques para o deleite do seu espírito. Lá escreveu alguns de seus livros e, com certeza passou muitos dos melhores momentos de sua vida. Chegou a dizer: “o Passaré sou eu em grande parte, completa-me, como eu o completei”

 

lagoaA lagoa do Passaré

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* Célvio Brasil Girão. Engenheiro agrônomo, penúltimo filho de Raimundo Girão e Marizot.

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O PASSARÉ

Raimundo Girão

Uma das minhas pousadas eu mesmo paulatinamente construí – o Passaré, o Sítio, e mansão que passou a ser-me – digo sempre – o refúgio das minhas covardias: aí é que me protejo nas minhas evasões.

Construí, sim, ponto por ponto, aos pingos de suor. A rica matéria-prima estava lá, porém não era minha. Adquiri-a, aos poucos, tirando da boca dos filhos algumas códeas para que as saboreassem multiplicadas, depois. O meu braço trabalhou para isso e não se extenuou, porque não abusei dos músculos atoamente. Cada plantinha que joguei na ¬terra hoje frutifica. E plantei muitas. Vi que fizera um pomar onde mais havia ervanços e espinhos. E no pomar os frutos não são unicamente meus e dos meus que me ajudaram, e sim também dos passarinhos descuidosos, que são a alegria maior dos arvoredos. As suas sonatas melodiam, encantando aquele painel da Natureza. Na lagoa as jaçanãs esvoejam brincalhonas e os aguapés soltam o perfume das suas pétalas brancas.

Como “fator ou agente geográfico”, modifiquei o natural para o meu gozo de espírito, e a modificação da geografia ajustou-se ao que planejei. O Passaré sou eu em grande parte, completa-me, como eu o completei.

E fiquei vaidoso na manhã em que, numa roda de amigos, perguntaram a Casais Monteiro, o apurado escritor que o Brasil tomou a Portugal, como definiria aquele Sítio, e ele respondeu: – “O Passaré é o Paraíso, pessoalmente”.

Não conto as reuniões da mais aberta cordialidade que se tem feito ali, e ainda se fazem, para regalo meu.

celina
A Celínia
casagrande
A Casa Grande
   

 

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DE 1810 ATÉ OS ANOS 1970

Raimundo Girão

O Passaré foi objeto de uma sesmaria concedida por D. João VI, em 1810 ao abastado fazendeiro e homem de comércio, o lusitano Antonio José Moreira Gomes. Um latifúndio, que se veio desmembrando em glebas menores na proporção em que os descendentes casavam e as separavam em porções para o seu domínio e fruição.

Do concessionário passou ao genro, casado com a filha única – José Antonio Machado, moço que mandou vir de Lisboa para ser seu guarda-livros. Este mesmo, depois, encarnava-se no Comendador Machado, figura de respeito e chefe político de influência na primeira metade do século passado. Ao seu primogênito – José Pio Machado, casado com Maria Joaquina do Nascimento, coube a herança do Passaré, já muito diminuído na extensão. Na verdade, só o âmago da área primitiva, mas com a Casa-Grande ainda como centro.

De José Pio o Sítio transferiu-se à filha Emilia Machado, casada com Tibúrcio Augusto de Abreu Lage. Enviuvando e não tendo filhos, Emília, por testamento de 23 de novembro de 1903, escrito pelo Tabelião Joaquim Feijó de Melo, legou em partes iguais os seus bens, inclusi¬ve o Passaré, às suas irmãs Maria Pio, casada com Joaquim Gomes Brasil, e Antônia Pio, viúva de Alcino Gomes Brasil, e às sobrinhas Maria e Clara Brasil, solteiras, Joana Brasil viúva de Boaventura Feijó, Aline Brasil, viúva de Inácio Menescal Parente (sem filhos) – todas ¬filhas daquela primeira irmã, e ainda, a Maria Emília, casada com Casimiro Ribeiro Brasil Montenegro, e à filha destes, Maria Ester Montenegro (Etinha).

Pertencente a esses legatários e seus descendentes encontrava-se o Passaré quando comecei as aquisições. O Sítio, em aberto, com limites duvidosos, em abandono, somente era explorado por alguns co-herdeiros na fabricação de tijolos, aproveitando-se os barros da lagoa. Milhões de tijolos – o conhecido tijolo branco de tanta utilização em Fortaleza – foram retirados dali, o que concorreu para transformar a aguada de lagoa rasa em reservatório de boa profundidade.

Conseguimos reunir em nossos nomes – o de meu sogro Prudente do Nascimento Brasil e o meu – as partes dos vários condôminos.

Eliminadas as dúvidas de fronteira com os vizinhos, entramos a desbravar a mataria encapoeirada e por tudo debaixo de cerca.

Restauramos a Casa-Grande senhorial e quase sesquicentenária com as suas enormes salas, enormes quartos e amplas varandas, mas em 1942 resolvi levantar outra casa mais próxima à lagoa, conservando de um lado a vegetação nativa e tratando do encher de árvores frutíferas o demais do terreno. A esta casa dei o nome de Celínia (1). Hoje, a paisagem, harmoniosa, de muita sombra, muita clorofila e excelente clima, tornou-se num virgiliano ¬refrigério.

Aquele angulus ridet completar-se-ia, espiritualmente, com a construção de uma igrejinha, que teria a invocação de São Joaquim desejo de Prudente e D. Inês, tendo em vista homenagear a memória do filho, tão cruelmente e santamente desaparecido desta vida. Conseguimos cooperação material de pessoas amigas e eu mesmo dirigi as obras, iniciadas em 19 de julho de 1948, obedientes ao projeto de meu cunhado Adauto Pinto. No ano seguinte, em 16 de agosto, foi inaugurado o pequeno templo, com a missa gratulatória rezada pelo Mons. Expedito Eduardo de Oliveira, Pró-Vigário Geral da Arquidiocese, hoje portador do báculo episcopal. Além das contribuições diversas, contamos com a prestimosidade do Secretário de Policia, cel. Humberto Moura, muito nosso amigo, que nos fornecia, diariamente, alguns presos correicionais para trabalharem ali. Viviam a curtir fome e sofrer castigos em xadrezes imundos e era-lhes vantagem prestar aqueles, pois lhes dávamos bom almoço e merenda, além de tratá-los humanamente. Iam vestidos só de calções, para evitar que fugissem, e acompanhados de praças embaladas. Nunca nenhum nos deu o menor desgosto. O coração, ainda que de um gatuno ou viciado, é sensível à delicadeza, aos bons modos. Foi nosso operário o afamado cangaceiro Cansanção, que pertenceu ao grupo de Lampião e já reingresso no convívio social: exemplo de obediência e confiança.

Os paramentos da igrejinha do São Joaquim ofertou-os Júlio Montenegro, componente de irmandade ilustre oriunda do velho e respeitado político Casimiro Ribeiro Brasil Montenegro, ex-condôminos do Sítio e todos primos do meu sogro Prudente, a quem jamais negaram as expansões de uma amizade coerente e efusiva.

Acertei com os meus sogros e Marizot passar para os seus e nossos filhos e netos, bem dividido, o Sítio Passaré, e, de fato, por escritura legalmente processada fizemos as doações de apreciável gleba para cada um (4 ha.), todas, convergindo para a lagoa.

O restante foi loteado e, ainda assim, doamos os lotes, também em caráter definitivo (Foto 2, p. 30). Adiantamos-lhes o que seria ¬deles por nossa morte. Só não o fizemos em relação à casa da Rua João Lopes, nossa morada própria desde 1940, por se tratar de bem indivisível, nada adiantando, portanto, uma doação das partes indivisas. O quinhão de minha cunhada Cléa ficou preservado, nele incluída a Casa-Grande, e apenas nos reservamos umas das glebas e poucos lotes para efeito de alguma liberalidade nossa ou de prevenção a qualquer dificuldade ¬eventual.

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(1) O nome Celínia foi dado em homenagem à mãe de Raimundo Girão: Celina Cavalcanti Girão. Celina também seria o nome da 1ª filha (natimorta) de Raimundo Girão e Marizot. Celina é o nome a 2ª filha de Girão e Marizot, nascida em seguida ao primogênito Célio. Celínia, segundo Girão, seria a casa das Celinas.

Como os nomes dos dois primeiros filhos Célio e Celina, começavam com as letras Cel, Girão e Marizot usaram o mesmo critério para nomear os filhos que se sucederam: Celita, Celmo, Celda, Celne, Célcio, Célber, Célvio e Celzir. Nota do Organizador.

bacuriO Bacurizal

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DE 1810 ATÉ OS ANOS 1970

Célvio Brasil Girão

Conforme afirmou Raimundo Girão, “acertei com os meus sogros e Marizot passar para os seus e nossos filhos e netos, bem dividido, o Sítio Passaré, e, de fato, escritura legalmente processada (1961) fizemos as doa¬ções de apreciável gleba para cada um (4 ha), todas, convergindo para a lagoa. O restante foi loteado (1967) e, ainda assim, doamos os lotes, ¬também em caráter definitivo. Adiantamos-lhes o que seria deles por nossa morte. O quinhão de minha cunhada Cléa ficou preservado, nele incluída a Casa-Grande, e apenas nos reservamos umas das glebas (a gleba “D” que contém a casa Celínia) e poucos lotes para efeito de alguma liberalidade nossa ou de prevenção a qualquer dificuldade eventual.”

Do final dos anos 60 anos e inicio dos 70 até os nossos dias, cada um dos herdeiros – já multiplicados nos seus próprios herdeiros – foi utilizando o produto das vendas de parte dos lotes a que lhes coubera para fazer face às suas várias necessidades: na construção ou aquisição de imóveis em Fortaleza ou mesmo na construção de casas nas glebas convergentes à lagoa. Nos anos 60 duas destas glebas, situadas ao sul da lagoa, foram desapropriadas para a ampliação do Zoológico Sargento Prata e do Horto Municipal. No início dos anos 70, sete glebas, localizadas à noroeste da referida lagoa foram também desapropriadas para a construção do Centro Administrativo do Banco do Nordeste do Brasil - BNB. Por esta época o nome Passaré extrapolou os limites do Sítio, vindo a dar nome a todo o bairro atualmente conhecido.

O remanescente da gleba pertencente à D. Cléa Gaspar Brasil foi vendido em 2004, sendo o produto da venda doado para seus sobrinhos. Nesta área remanescente da gleba de D. Cléa, encontrava-se a Casa-Grande, construída na segunda década do Século XIX, constituindo-se por ventura na mais antiga edificação de Fortaleza até o dia em que, já bastante danificada, foi demolida. Com o peito apertado e os olhos marcados pelas lágrimas da saudade, tivemos que ver, reduzidos a escombros, aquilo que representava quase duzentos anos na história da família. O progresso inexorável cobrou o seu preço de forma fria e brutal.

Apenas parte de duas destas glebas convergentes permanecem, hoje, com dois dos herdeiros.

Na atualidade, o Sítio Passaré encontra-se reduzido à lagoa, ainda preservada nos seus limites, e à área remanescente da gleba “D” que contém a casa Celínia de Raimundo Girão e Marizot, perfazendo uma área total de aproximadamente 12 ha.

A Celínia continua sendo a casa dos encontros costumeiros e festivos – os domingões – da numerosa família Brasil Girão. Estas reuniões familiares, aglomerando, às vezes, mais de uma centena de pessoas, foram por muito tempo conduzidas por Raimundo Girão e Marizot. Com a morte destes, continuam a ser realizadas com “amor, harmonia e emoção”, sob a batuta das suas filhas Celda e Celne.

Estas duas “meninas da Marizot” são, na verdade, anjos da guarda cheios de bondade e solidariedade, constituindo-se, em nossos dias, na referência maior e num “porto seguro” de convergência para toda a ¬família.

O Passaré, a despeito do crescimento da cidade, que parece querer tragá-lo, apresenta, ainda hoje e apesar de tudo, todo o esplendor da beleza verde de seus bosques, de suas matas virgens, do bacurizal amazônico, além de uma fauna impensável de existir dentro de uma cidade como a Fortaleza de hoje. Ainda é possível vermos: sagüis, cobras de diversos tipos, tejuaçus, camaleões, cassacos, preás, e até raposas, bem como, utilizando as palavras de Raimundo Girão, “os passarinhos descuidosos, que são a alegria maior dos arvoredos. As suas sonatas melodiam, encantando aquele painel da Natureza. Na lagoa as jaçanãs esvoejam brincalhonas a os aguapés soltam o perfume das suas pétalas brancas”.

A Exma. Sra. Prefeita de Fortaleza, Luiziane de Oliveira Lins, assinou, em 26 de janeiro de 2006 (publicado, no dia 01 de fevereiro do mesmo ano no Diário Oficial do Município), o Decreto nº 11.981, que declara de utilidade pública para fins de desapropriação as áreas remanescentes do Sítio Passaré, que se “destinam à ampliação do Parque Zoológico Sargento Prata e do Horto Municipal além da preservação ambiental do sítio ecológico da Lagoa do Passaré, assim como da casa do escritor e Historiador Raimundo Girão...”

Queira Deus que o destino deste lugar paradisíaco, ainda que já ameaçado, mas inacreditavelmente preservado e próximo ao centro de Fortaleza, continue a ser o de proporcionar emoção, paz e alegria ao maior número possível de pessoas.

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