Antônio Martins Filho - O Meu Amigo Raimundo Girão: As Origens do Nosso Relacionamento

Após uma ausência de quase doze anos retornei ao Ceará, no propósito de fixar residência nesta cidade de Fortaleza.

O meu estado de saúde era bastante precário e essa situação gradativamente se agravava, tornando os meus dias amargurados e o meu espírito bastante confuso, pela insegurança do futuro que eu teria de enfrentar.

Depois de modestamente instalado com minha mulher e cinco filhos, tomei a resolução de viajar ao Rio de Janeiro, em busca de solucão para os males que me atormentavam.

Ali, antes de ser submetido a uma operação de apendicite, diagnosticada como a causa principal do meu desajustamento orgânico, fui convidado a participar do comite de jornalistas que iriam promover, em nível nacional, a campanha pró-Armando de Sales Oliveira à Presidência da República.

A essa altura fui acometido de nova crise, pelo que tive de ser hospitalizado com urgência, perdendo, consequentemente, todos os contactos com os jornalistas meus amigos.

A cirurgia foi simples, mas surgiram complicações que determinaram a minha permanência na Casa de Saúde, por cerca de vinte dias.

Depois que recebi alta, dirigi-me a cidade de S. Paulo, onde tratei exclusivamente de assuntos comerciais.

Regressando a Fortaleza, desiludido das problemáticas vantagens de ordem política, que me foram acenadas, passei a exercer diferentes atividades, convencido de que teria de encontrar um rumo capaz de estabilizar a minha vida, economicamente desfalcada.

Assim, aceitei a regência de uma disciplina dificil, a ser ministrada no Curso Pré-Juridico do Liceu do Ceará. Instalei um Escritório Comercial de Representações, Consignações e Conta Própria. Adquiri, por compra, a Tipografia Editora Fortaleza, de propriedade de Joaquim Silveira Marinho. Anunciei a minha habilitação profissional como advogado em causas cíveis, comerciais e até criminais.

Dessas diversas atividades afeiçoei-me precisamente aquela menos produtiva, ou seja, a Editora Fortaleza, onde conheci um homem importante, amavel no trato, ponderado nas afirmações, bacharel e doutor em Direito, membro do Tribunal de Contas do Estado, escritor e que já havia exercido as funções de Prefeito Municipal de Fortaleza. Esse homem a que me refiro era exatamente RAIMUNDO GIRÃO.

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Com o acervo da Editora Fortaleza vieram alguns trabalhos tipográficos já iniciados e ainda não concluídos, entre eles, uma obra da autoria de Raimundo Girão. Era, aliás, uma tese de doutoramento, sob o título O Fenomeno Freudiano e a Criminologia.

Na fase da apresentação material da plaqueta, tive oportunidade da manter com o seu autor alguns diálogos, que progressivamente se amiudaram.

Naquele ensejo, o Doutor Girão estava preocupado em elaborar um Álbum Fotográfico da Cidade, publicação do Rotary Club de Fortaleza, para comemorar o quinto ano de funcionamento do único clube rotário existente no nosso Estado.

Passei a observar que se tratava de uma pessoa esclarecida,que sintonizava com as minhas idéias e que aplaudia algumas das minhas iniciativas, quanto ao programa a ser executado pela Editora de minha propriedade.

Certo dia, Doutor Raimundo Girão consultou-me sobre se aceitaria almoçar, como seu convidado, no Rotary Club. Aquiescendo ao convite, participei de uma reunião semanal do Rotary, presidida pelo ex-chefe Theodoro Ziesemmer, co-gerente da firma Lundgren e Cia. Ltda., proprietária das Casas Pernambucanas.

Impressionou-me a parte protocolar do Rotary, a apresentação de cada um dos seus membros com as respectivas classificações, a palestra e, principalmente, a parte reservada ao companheirismo.

Manifestei essa minha impressão muito agradável ao meu anfitrião que, em seguida, disse-me que ja havia sido feita a minha escolha para sócio do Rotary onde iria preencher a classificação de "Imprensa a Publicações - Casas Editoras".

Observei bem nítida a preocupação do meu novo amigo, de promover o meu rápido relacionamento com os seus colegas rotários e tambem perante o seu vasto círculo de amizades.

Na Editora Fortaleza passei a dar expediente integral, em consequência de meu propósito de lançar novos autores. Isso de fato ocor­reu, notadamente em relação a Sinobilino Pinheiro (Evangelização), Antonio Girão Barroso (Alguns Poemas), Manoel Albano Amora (Ma­nhã de Amor), sem esquecer colegas ilustres, dos quais muito me aproximei como professor do Liceu do Ceará. Destaco entre eles Monsenhor José Quinderé e o Professor Martinz de Aguiar. Destes dois últimos publiquei Ano Litúrgico e Notas e Estudos de Português. Ainda promovi a publicação, com o patrocínio de José Edésio de Albuquerque, do livro Padaria Espiritual, da autoria de Leonardo Mota.

No entanto, a principal finalidade da Editora consistia em me possibilitar a edição mensal de uma revista de letras, a que dei o nome algo precioso de VALOR, na qual o Doutor Raimundo Girão colaborava assiduamente.

Meses depois, ja efetivada a minha posse como Sócio do Rotary Club de Fortaleza, disse ao meu companheiro rotario que estava preocupado em elaborar um livro sobre aquilo que me parecia refletir a realidade cearense, isto é, um trabalho sem a clássica abordagem do tema da seca, da miséria, do subdesenvolvimento, já exageradamente explorado no âmbito regional e nacional.

Seria uma fotografia do lado positivo do nosso Estado, nos seus vários aspectos: fisiográfico, antropológico, histórico e literário, podendo ainda condensar informações úteis sobre cada um dos municípios e trazendo, com ligeiras notas bibliográficas, a relação dos seus filhos mais ilustres.

Lembro-me de que Raimundo Girão me ouviu atentamente e não se manifestou sobre o assunto, muito embora eu lhe tivesse dito que, sozinho, não me aventuraria a produzir uma obra dessa grandeza, mas que, com um colega que afinasse com esse ponto de vista, estaria disposto a dar execução ao projeto, assumindo até mesmo a responsabilidade total pela parte econômica do empreendimento.

Dias depois, eis que me aparece o Doutor Girão, com um esquema perfeito daquilo que seria necessário para a elaboração da obra, que traria simplesmente o nome de O Ceará. Estavam ainda indicados os especialistas, aos quais iríamos recorrer, para assumir a responsabilidade pela explanação de alguns temas que completariam nosso trabalho. Quanto aos municípios, teríamos nós ambos de escrever as pequenas monografias, sendo que poderíamos recorrer ao Dr. Thomaz Pompeu Sobrinho para se encarregar, no todo ou em parte, do estudo da origem dos topônimos.

O plano para a impressão de O Ceará foi integralmente executado, possibilitando o lançamento da obra no início de 1939. A primeira edição, de apenas 3.000 exemplares, esgotou-se rapidamente, permitindo uma segunda edição em 1945 e uma terceira e última em 1966, corn os acréscimos e as atualizações necessárias.

De como O Ceará foi acolhido em nosso Estado e em todo o País, dizem as apreciações e críticas divulgadas pela imprensa, de tal modo volumosas e importantes, que chegaram a ser enfeixadas num opúsculo.

A minha afinidade com as idéias e a maneira de proceder de meu amigo Raimundo Girão se tornou de tal modo intensa, que resolvemos associar-nos em um Escritório de Advocacia. Instalamo-nos em duas salas do Edifício Studart, à rua Barão do Rio Branco, mas poucos meses depois passamos a trabalhar em amplo salão da Associação Comercial do Ceará, da qual havia o Girão assumido as funções de Consultor Jurídico.

Não nos faltou clientela selecionada e tudo indicava que, dentro em breve, estaríamos com uma das mais prósperas bancas de advocacia das existentes em Fortaleza. Acredito que essa nossa previsão teria provavelmente se concretizado, não fosse a nossa teimosia em realizar, até de maneira exagerada, os lemas rotários que recomendavam: "Dar de si sem pensar em si", na alta compreensão de que - "Mais se beneficia aquele que melhor serve".

Efetivamente, com a nossa inquietação cultural, verificamos que o Almanaque do Ceará, fundado por João Câmara, em 1895, e continuado pelo seu filho Sófocles Câmara havia passado para a direção do intelectual Joaquim da Silveira Marinho, conservando a tradicional linha de conceito conquistado pelo velho repositório informativo.

Silveira Marinho, transferindo, mediante operação de compra e venda, a propriedade da Tipografia Editora Fortaleza, desinteressava-se pela direção do Almanaque, cuja propriedade foi adquirida por mim e pelo meu colega de escritório, Raimundo Girão.

A partir daquele momento, os nossos interesses como advogados deixaram de sentir todo aquele entusiasmo inicial. É que teriamos de dividir o tempo disponível, não somente com o objetivo de dar ao Almanaque uma feição moderna, como também, um conteúdo mais atrativo, sendo assim, colocada em segundo plano a possibilidade de lucros materiais.

De minha parte, além da direção da Academia de Comércio Padre Champagnat, de cujo corpo docente Raimundo Girão participava, estava ainda preocupado na elaboração de uma tese jurídica, com a qual iria inscrever-me para o concurso de professor Catedrático de Direito Comercial, da Faculdade de Direito do Ceará, onde já exercia a regência da referida disciplina, em caráter interino.

A essa altura, já haviamos chegado a uma conclusão: não iriamos enriquecer com nossos proventos de advogados, pois que não tinhamos nascido com a sorte da formiga e, por isso, teimavamos em ser cigarras, posto que as atividades intelectuais tinham para nós um poder irresistível.

Em verdade, tornamo-nos sócios titulares do Instituto do Ceará e da Academia Cearense de Letras, as mais importantes instituições culturais do nosso Estado, com a circunstância de sermos detentores de vasta folha de serviços, espontaneamente prestados aos dois tradicionais Sodalícios.

Até aí trabalhamos juntos e tudo correu harmonicamente, quanto a nossa convivência profissional e diária.

Naquele momento, eis que surgiu um fato novo: Raimundo Girão foi convidado a aceitou a incumbência de fazer funcionar, em Fortaleza, uma Comissão Estadual da Legião Brasileira de Assistência. Ficou inteiramente empolgado com a possibilidade da execução de um amplo programa em favor da maternidade a da infância, o qual iria trazer, a curto prazo, benefícios incalculáveis para a população de Fortaleza e, a longo prazo, para todo o Estado do Ceará.

Em consequência desse entusiasmo, a LBA foi instalada dentro do nosso Escritório. Com a nomeação da Sra. Maria José Weyne para a presidência da Comissao Estadual, passou a funcionar a LBA em sede própria, a rua Pedro Pereira, esquina com a rua Major Facundo, tendo o Raimundo Girão como Secretário-Executivo, ou seja, o principal responsável pela sua implantação e consolidação no Ceará.

A dedicação do meu colega à LBA foi de tal modo acentuada, que abandonou não só o nosso Escritório de Advocacia, mas ainda as funções de Consultor Juridico da Associação Comercial, que passaram temporariamente a ser por mim executadas.

Sem a intensidade do entusiasmo de Raimundo Girão, trabalhei a seu lado como chefe da Procuradoria Jurídica da Legião, exercendo, concomitantemente, outras atividades lucrativas, inclusive as de advogado.

Nessa época, ja havia me envolvido com o movimento pró-fundação de uma Universidade entre nós, iniciado em 1948 e vitorioso a partir de dezembro de 1954, com a concretização dos nossos objetivos.

Na realidade, trata-se de uma outra história, aliás muito longa, que transformou profundamente o panorama educacional e cultural do Ceará e que também modificou inteiramente o curso do destino de minha vida.

É que dessa história participei ativamente, na condição de primeiro Reitor da então Universidade do Ceará, depois Universidade Federal do Ceará, implantada por mim e dirigida durante doze anos consecutivos.

Daí em diante, dediquei-me integralmente às lides universitárias, no âmbito local e nacional.

Tive assim o ensejo de instalar e dirigir a Universidade Estadual do Ceará - UECE, como Reitor pro-tempore. Por último, já ultrapassada a faixa etária dos oitenta, aventurei-me a criar, coadjuvado por excelentes colegas, a Universidade Regional do Cariri - URCA, por mim dirigida em sua fase de instalação.

Nessa parte essencial da minha vida, cujo resumo transcende os objetivos deste trabalho, contei sempre com a prestimosidade, o assessoramento e a valiosa solidariedade do meu dedicado companheiro Raimundo Girão, eficiente cooperador em tudo o que dizia respeito às nossas iniciativas culturais.

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Não pretendo nestas reminiscências esboçar o perfil biográfico do meu insigne colega, nem fazer estudo crítico da sua obra. Isso certamente ainda será motivo das minhas elucubrações, porém é tarefa que demandará tempo e tranquilidade emocional de que ora não disponho.

RAIMUNDO GIRAO foi o meu insubstituível companheiro de lides intelectuais durante meio século de convivência fraternal. Foi um patriarca respeitável e prestimoso, elevado à categoria de ídolo por sua numerosa descendência. Foi um homem de caráter ilibado e de espírito público insuperável. Foi no Ceará o maior e mais profundo historiador de nossa atualidade cultural. Foi o insigne autor de mais de sessenta publicações, versando precipuamente assuntos históricos, mas também, com profundidade, temas literários e jurídicos.

RAIMUNDO GIRAO, considerado um dos vinte maiores cearenses de todos os tempos, foi, acima de tudo, imperecível patrimônio para o Ceará e, particularmente, para esta cidade de Fortaleza - A Princesa Vestida de Baile - que ele tanto amou.

Quando o visitei pela última vez, esse meu irmão espiritual e duplamente compadre pediu os óculos para fixar bem a minha fisionomia. E num gesto simbólico de aperto de mãos, com uma lucidez extraordinária, transmitiu-me sua derradeira e confortadora mensagem: SEMPRE AMIGOS!

Aquelas duas palavras me emocionaram profundamente e, durante o retalho de vida que o destino ainda me conceder, delas jamais esquecerei.

(D. O. Letras -- Ano III nº 12 - julho/setembro 1988)

Antônio Martins Filho. Escritor, foi o criador e primeiro reitor da Universidade Federal do Ceará (UFC), reitor da Universidade Estadual do Ceará (UECE), um dos criadores da Universidade Regional do Cariri (URCA), membro do Instituto do Ceará e da Academia Cearense de Letras.