Eduardo Campos - Raimundo Girão e o Ceará

Raimundo Girão, que agora se ausenta do nosso convívio, deixa na Cultura do Ceará expressiva marca de talento, quer pelas dezenas de livros que escreveu - dentre estes uma obra-prima, "História Econômica do Ceará", indicativo indispensável à compreensão dos problemas da região e de seu povo, ao longo do tempo - quer pela feliz inspiração perseguida desde os instantes históricos do 1° Congresso de Escritores do Ceará, e afinal tornada realidade, a Secretaria da Cultura do Estado, à qual coube instalar e dirigi-la com dignidade, inaugurando ali - de modo próprio e didático - a preocupação objetiva pela preservação de nossos monumentos históricos e bens culturais.

Se o Barão de Studart foi o pesquisador incansável e erudito de dados e fatos de interesse da historiografia cearense, revelador de acontecimentos que antes permaneciam inapropriáveis pelos estudiosos, Raimundo Girão impôs-se ao conceito público por patrocinar o sentido modernizante da pesquisa histórica. Com ele, graças à sua acuidade de perquiridor, não importariam os fatos e dados apresentados apenas como fatos isolados, distantes de nós, mas o conhecimento destes aproveitados em função da atualidade da ação das várias vertentes culturais do Estado (tradições, economia, geografia humana, antropologia social etc) por onde se propôs - e o fez com irrepreensível seriedade a empreender para "explicar, não apenas o que foi, mas o que é o Ceará."

Daí ter-se voltado sua atenção para a nossa evolução econômica e social; para a informação de caráter municipalista, onde não apenas aflora, mas jorra, com apreciável equilíbrio a paixão com que se devotou à cidade de Fortaleza, nossa amada urbe, instrumentalizada através de repetidas obras de conhecimento e erudição: "Geografia Estética de Fortaleza", "Matias Beck - Fundador de Fortaleza", "A Cidade do Pajeú", "Descrição da Cidade da Fortaleza"... até o recentíssimo "Fortaleza e a Crônica Histórica".

A história do Ceará, com Raimundo Girão, passa a se subordinar ao humano e ao social. Toma, por assim dizer, outro indumento; aproveita detalhes, é participativa. Não edifica o passado, desamarrado da contemporaneidade.

O leitor, por exemplo, percorrendo as páginas de "Geografia Estética de Fortaleza" é parte também de um contexto que não se confina no que transcorreu. Em rigor, pode sentir-se (e na verdade é) extensão do que passou, que a história só se efetiva perene quando transmite aos de hoje a atmosfera "do já vivido", aliciando-os para o seu "script".

Perde o Ceará, indiscutivelmente, uma das figuras mais respeitáveis de sua vida cultural. Raimundo Girão escreveu história com a capacidade só dada a conhecer aos privilegiados da arte de contar. Contar com desejável criatividade.

(Diário do Nordeste, ed. de 28.07.1988)

Eduardo Campos. Escritor, jornalista, membro do Instituto do Ceará e da Academia Cearense de Letras.