Mozart Soriano Aderaldo - Ele Era um Homem Poliédrico

Conheci-o há quase cinqüenta anos. Envolvido eu, com alguns intelectuais jovens que organizavam o 1° Congresso de Poesia do Ceará, núcleo do futuro Grupo Clã, olhávamos para Raimundo Girão como para um guru. Apenas maduro, era ele autêntico líder dos que mourejavam nas lides intelectuais em nossa terra.

Recuo mais no tempo e lembro a época em que, sendo eu simples aluno do Liceu, Raimundo Girão já era Prefeito de nossa Capital, calçando-a de cimento em substituição às pedras irregulares de nossas ruas, reformando a Praça do Ferreira e levantando, em seu centro geográfico, a desaparecida Coluna da Hora. Mas então eu o via de longe, admirando-me de sua indiferença às críticas que sempre aparecem contra os inovadores. Aproximação entre nós se deu, de fato, na década de 40. E desde então, caminhávamos juntos, a ponto de dizer ele, em seu leito de doente terminal, a um comum amigo (Manoel Albano Amora) que, no decorrer desse longo tempo, nenhum arranhão ocorrera em nossa mútua amizade. Que beleza!

Girão foi um conterrâneo de múltiplas facetas. Grande em todas elas. Ótimo filho, ótimo marido, ótimo pai, ótimo avô, ótimo irmão, ótimo amigo. E grande, também, como homem de pensamento, legando-nos uma rica bibliografia, com preferência para os temas históricos. Era, sem dúvida, nos últimos anos de sua proveitosa existência, o nosso maior historiador.

Foram inúmeras as suas iniciativas no campo intelectual. Figura ímpar no Instituto do Ceará, de que era Presidente Honorário; Presidente da Academia Cearense de Letras e um de seus reformadores; criador do Instituto Cearense de Genealogia e seu maior incentivador; Presidente Honorário da Sociedade Cearense de Geografia e História; idealizador da Secretaria Estadual de Cultura e seu primeiro Titular; idealizador da Secretaria Municipal de Urbanismo e seu primeiro ocupante. Muitas outras iniciativas teve ele, sendo impossível citar todas elas nesta crônica de saudade.

Insisto em dizer que Raimundo Girão era um homem poliédrico. Foi ele, sem contestação, o instalador do Rotary em nossa terra. Isso lá pelos idos de 1933, 1934, quando ainda prefeito de Fortaleza. E foi como prefeito da capital cearense que trouxe para cá o urbanista Nestor de Figueiredo, que elaborou um excelente Plano Diretor para nossa cidade, infelizmente não executado pela curteza de vista dos críticos das obras arrojadas. Se posto em execução naquela época, quando nossa capital ainda não se expandira e o projeto era perfeitamente exeqüível, hoje moraríamos em uma cidade muito mais ordenada e humana.

Sua bagagem intelectual é das mais volumosas e valiosas. Destaco aqui as de minha especial preferência, como a sua apenas no nome "Pequena História do Ceará"; a publicação "O Ceará", em colaboração com Martins Filho; as monografias que escreveu sobre nossa cidade, especialmente a "Geografia Estética de Fortaleza"; suas deliciosas memórias, sob o sugestivo título de "Palestina (a "fazenda" em que nasceu), uma Agulha a as Saudades"; sua magnífica pesquisa sobre a "A Abolição no Ceará" (título do livro); sua "História da Faculdade de Direito do Ceará"; seu "Dicionário da Literatura Cearense", em colaboração com Maria da Conceição Sousa; e, finalmente, sua pioneira "História Econômica do Ceará". A relação é indiscutivelmente incompleta e outros salientariam diversas publicações de sua lavra que aqui não foram referidas. Explico novamente: questão de inclinação pessoal.

Foi desse estofo o homem que o Ceará perdeu há pouco, deixando um lacuna impreenchível no mundo cultural e associativo de nossa terra.

E é sobre sua tumba que deposito as flores de minha saudade.

(Tribuna do Ceará, ed. de 06.08.1988)

Mozart Soriano Aderaldo. Escritor, historiador, membro do Instituto do Ceará e da Academia Cearense de Letras.