Roberto Ribeiro - Um Girão Chamado Raimundo

Parcialmente afastado das atividades literárias, recebo, por telefone, do meu fraterno amigo, escritor Geraldo Fontenelle, a feliz incumbência de escrever pequeno artigo sobre Raimundo Girão no bem-vindo jornal "Notícias Culturais". Impossível deixar de atendê-lo não só pela magnanimidade da personagem enfocada, mas, também, pelos laços de estreita amizade e benquerença que me ligam ao velho jornalista.

Girão, insistentemente, gostava de me dizer que se considerava pessoa inteiramente realizada. Achava que tinha convicção disso, ter alcançado as posições sociais e culturais que sempre almejou. Desprendido da idéia de amealhar fortuna material, deixou-se levar sempre no direcionamento das conquistas sociais e nesse mister se fez grandioso. Humanista vibrante e batalhador, capaz até de sacrifícios pessoais para correr em auxílio do semelhante. Na família, então, achava-se em lugar felicíssimo e era eufórico em proclamar, repetidamente, que todos os filhos haviam procriado, presenteando-o com os mais bonitos netos. Nunca intercedeu no temperamento e no proceder de qualquer deles, permitindo-lhes, sempre, a seqüência livre do modo de pensar e de agir de cada um. Fê-los, a todos, homens de bem. Ao lado de Marizot formou o par perfeito, a dupla matrimonial mais harmônica que meus olhos viram até o dia presente.

Dizia que tinha podido vivenciar três experiências distintas, porquanto fora sertanejo, serrano, e mais tarde litorâneo. Sertanejo, porque foi o agreste do sertão jaguaribano que o viu nascer a 3 de outubro de 1900, na Fazenda Palestina, encravada na aridez de terras moradanovenses. Adolesceu em meio ao clima serrano maranguapense, banhando-se nas águas correntes cristalinas de altas quedas cachoeirentas. Lembrava sempre com muita saudade o tradicional "banho do escorrego", onde, aliás, estivemos, ele e eu, colhendo cenas cinematográficas para documentário que idealizei e produzi sobre sua vida. Mais adiante fez-se praiano, vindo residir com a família em Fortaleza, fixou residência definitiva na Capital, onde daria os primeiros passos no estudo aprofundado dos nossos costumes, do nosso clima e da nossa gente. O Raimundinho, assim tratado carinhosamente pelos de casa, conseguia, às vezes, algo inédito: mesclava brandura, compreensão e complacência, com rigor, austeridade e muita determinação. Para estudar e escrever sobre o Ceará, foi toda vida inquieto e apressado. Adentrou madrugadas no afã de descobrir mais. Tinha predisponência diuturna para responder sobre o Ceará e o seu povo. Ele era assim, para cada tempo e hora reservava o "modus faciendi" adequado.

Triste de alguém que resolvesse falar mal do Ceará. Brigava fosse com quem fosse, como um filho briga para defender o pai. Aplaudia com muito entusiasmo as grandes figuras literárias cearenses que brilharam nacional e internacionalmente, mas tinha predileção toda especial pelas obras de José de Alencar e de Gustavo Barroso, por quem nutria muito respeito e sobrada admiração. De Alencar, então, era nacionalmente reconhecido como fã ardoroso. Tinha posicionamentos originais, como por exemplo, não aceitar de forma alguma a divulgação que se faz em filmes, revistas e jornais sobre a vida do Capitão Virgulino, "O Lampião". Rei do Cangaço, malfeitor, saqueador, criminoso perverso - dizia ele - merecia ter sido enterrado e nunca mais ser falado. Lampião foi um registro de maldade na vida do povo sofrido e faminto do sedento nordeste. É apenas uma página triste da história que, se não pode ser esquecida, muito menos merece ser lembrada.

Apesar de sempre haver manipulado com muita sapiência os registros da historia, ter fundado museus e completado quase 88 anos, não era nem um pouco antigo. Saudosista de primeira água, mesmo assim pautou a vida inteira deixando-a correr livremente nos trilhos da evolução, porque sabia ser impossível quebrar a velocidade da linha continuada do modernismo. Possuía preparo psicológico para entender fatos e circunstâncias do mundo moderno. Certa ocasião, em visita ao Rio de Janeiro, aconteceu de um filho seu roubar uma moça aqui em Fortaleza para casar. A família, apreensiva, procurou-lhe poupar do susto e dissabor, passando-lhe o acontecido do modo mais ameno. Girão ao ser informado do episódio, pediu uma champanha a disse: "que beleza, vamos comemorar". Era assim o Raimundinho. Foi homem que muito cedo enfrentou responsabilidades, tendo, inclusive, aos 33 anos, gerido os destinos de Fortaleza, na condição de Prefeito Municipal da bela Capital Alencarina. Avionou por quase toda a Europa e, em Portugal, tomando conhecimento da existência de um Girão nos arredores de onde se hospedava, tratou de ir conhecê-lo pessoalmente, não deixando escapar o espírito curioso de genealogista. Fundou a Secretaria de Cultura do Ceará, tendo sido seu primeiro titular.

Não nasceu afeito à prática de dirigir automóveis, pois, segundo depoimento do próprio, em tom chistoso, as duas vezes que tentou, numa, atropelou uma carroça e na outra derrubou uma carnaubeira. Daí foi um passo para esquecer de vez a idéia. Descobriu que seu guidão era a caneta e os carros, seus livros. Estes sim, dirigiu-os com aprumo, fez piruetas, marchas à ré, retilíneas, andou só em duas rodas, enfim, mil e uma acrobacias. E o que é mais importante, conseguiu uma quilometragem poucas vezes alcançada pelos intelectuais da terra. Em termos de "CEARÁ" este Girão chamado Raimundo foi enciclopédico, merece pois Otium cum dignitate.

(Jornal Notícias Culturais, de Fortaleza, ed. de maio de 1990).

Roberto Ribeiro. Escritor, jornalista e empresário.