Célio Brasil Girão - Meu Pai, uma Agulha e as Saudades

Aprendi muito em minhas viagens pelos lugares, pelos livros e pela vida. Foi no exemplo de vida de meu pai, todavia, que tive as melhores lições, entre elas as que me ensinaram que determinação, coragem, grandeza de objetivos e paciência são as virtudes essenciais para a grande caminhada. Sempre mantivemos relacionamento que considero exemplar. Ele representou para mim, sobretudo nos verdes anos de minha formação, aquela bússola de que fala em PALESTINA, UMA AGULHA E AS SAUDADES, seu livro de memórias, que releio de quando em vez. As saudades completam agora um ano. De vez em quando surpreendo-me, nos momentos de silêncio e reflexão, conversando com ele. E aprendi, ao longo destes meses, que nem sempre saudade é um sentimento marcado pela tristeza - experimento muitas vezes sensação de alegria ao ter recordação dele.

A lembrança de alguns fatos que marcaram nossa convivência levou-me à idéia de traçar um perfil desse pai. Sobre o grande homem que ele foi se tem escrito muito. É uma singela homenagem que lhe presto ao fim deste primeiro ano de ausência.

Contava eu cinco anos de idade quando lá em nossa casa no Jacarecanga tomamos conhecimento, os filhos mais velhos, de que Raimundo Girão era Prefeito de Fortaleza. Não sabíamos bem o que significava mas parecia coisa boa. De qualquer forma, aquilo não mudou nossa maneira simples de viver e uma das lembranças maiores que deixou foi a daquele automóvel, novidade na época, que todos os dias chegava muito cedo para apanhá-lo, voltava para o almoço, e de novo o trazia de volta à tardinha. Meio às escondidas, o motorista da Prefeitura conduzia-nos cem ou duzentos metros além de nossa casa para manobrar o carro. Era o nosso tão esperado "passeio". Só alguns anos mais tarde pude entender tudo aquilo. O carro da Prefeitura era para levar e trazer o Prefeito, somente. As saídas muito cedo pela manhã tinham como objetivo conduzi-lo para fiscalizar pessoalmente as obras em andamento, como a nova pavimentação da cidade, de concreto e paralelepípedos, tão bem feita que durou quatro décadas e veio a servir de base para o asfalto de hoje, na Rua Major Facundo, na Barão do Rio Branco e em muitas outras. Amava Fortaleza e tinha paixão pelo seu trabalho à frente da Prefeitura, o que já revelava um dos traços mais marcantes de sua vida: o respeito à coisa pública, o amor ao povo. Levávamos vida modesta naquela casa, mas não nos faltava o essencial. Um Prefeito não podia, naqueles tempos, comprar bicicleta para o filho. Mas tínhamos as temporadas do Passaré, a as férias no sertão, que ele coordenava com grande entusiasmo, levando dezenas de Girões em viagens que duravam quase dois dias, contra o nosso desejo, o dos meninos, que torcíamos para que o caminhão do Luiz Tibúrcio não saísse dos atoleiros e se gastassem três para se chegar à fazenda, em Morada Nova. Tínhamos muito mais do que isso: contávamos com muito afeto por parte dele e de mamãe. Reinava alegria lá no Jacarecanga, é do que me lembro.

Mudamo-nos em 1937 para perto do Colégio Castelo Branco e do Colégio da Imaculada Conceição, pois "precisávamos estudar nos melhores colégios". Ficamos pouco tempo naquela casa de esquina na Avenida Dom Manoel, bem perto do Castelo. Certo dia, o merceeiro da esquina em frente veio com a mulher fazer queixa formal a meu pai, acusando-me de haver jogado, de propósito, um fogo de artifício de forma a quase atingir sua família, sentada à calçada. Não era verdade, não havia sido de propósito. Acreditou na minha palavra e não me censurou. Uma semana depois vi que nos mudávamos para casa melhor, três ou quatro quadras dali, longe do velho bodegueiro neurastênico. E foi uma beleza para nós filhos, sobretudo para mim que logo engrenei na pelada de futebol que o grande terreno baldio ali em frente fez nascer. Meu entusiasmo pela bola era imenso, superando de longe o entusiasmo pelos livros. Não me desestimulou de todo quanto ao futebol. Ele mesmo havia sido um grande "back" direito no "Guarani Athletic Club", nos anos vinte. Ao contrário, consolava-me diante das sucessivas derrotas que nos infligiam os argentinos, sempre achando que o time brasileiro arrancaria a "reabilitação" no próximo jogo. E me presenteava aqui e ali com uma nova bola de couro. Com jeito, em meio à nossa eterna troca de idéias, ia-me levando mais para o lado dos livros, fazendo-me um freqüentador cada vez mais assíduo do seu gabinete de leitura. E conseguiu o que desejava: ficou radiante quando lhe comuniquei minha vontade de viajar para cursar Medicina. Era a "grande virada" e ele não deixou passar a oportunidade.

E lá fui eu, menino velho de dezesseis anos, armado de determinação e coragem, para um encontro definitivo com a profissão de Médico. As cartas que me fazia eram lindas e logo me chamou a atenção o fato de que repetia, aqui a ali, um conselho que mandara na primeira - "seja amigo de seus amigos". Ensinava-me lealdade, um dos selos identificadores de seu caráter. Meus amigos ficam sabendo agora porque tenho sido escravo da lealdade, ao longo da vida. Era generoso demais. Não acreditava na maldade dos outros, na deslealdade dos outros. Nunca vi alguém considerar fraternos tantos amigos; alguns realmente o foram. Certa vez, ao indagar-lhe sobre a solidez de sua fé cristã, respondeu que era total e revelou, na ocasião, que rezava todas as noites por uns dez amigos que haviam morrido, citando-lhes os nomes. Conheci quase todos, e acho que mereciam as preces. Nos últimos anos a lista já era de quase vinte. Impunha limitação à democracia que sempre reinou lá em casa: não se podia falar mal de seus amigos, o que na prática significava que não se podia falar mal de quase ninguém. Não tinha inimigos.

Ao longo do curso médico, no Rio de Janeiro, tive tudo de que precisava. Nunca me faltaram, por exemplo, os melhores livros de Medicina, minha grande mania. Juntos combinávamos, periodicamente, o valor de minha "mesada", ele puxando um pouco para mais, eu um pouco para menos - era desse tipo o nosso relacionamento. E pude dedicar-me de corpo e alma ao estudo da Medicina, o sonho mais constante de minha vida.

Recebeu-me, quando de minha formatura, com uma grande festa em nossa casa da Rua João Lopes, 14, ali onde hoje funciona o Cartório Martins e aonde vou, com alguma freqüência, reconhecer "firma". Não tenho mais firma noutros cartórios, um pretexto para revisitar aquela casa que construiu para nós em 1940 e onde vivemos, eu, Celina, Celita, Celmo, Celda, Celne, Célcio, Célber, Célvio e Celzir, muitos dos melhores anos de nossas vidas. Passadas as comemorações, manifestei-lhe desejo de fazer pós-graduação, talvez em São Paulo, talvez em Buenos Aires. Apoiou-me, assegurando-me que até Buenos Aires ele garantiria. Tomou cinqüenta contos emprestados ao Tiburcinho, seu tio, mediante pagamento de juros pequenos. Isso me garantiu os primeiros meses no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, até minha vinculação formal com o Hospital, como Auxiliar de Ensino. Foram dois anos decisivos em minha vida.

Ao retornar ao Ceará, devidamente preparado, acreditava eu, senti novamente a solidariedade de meus pais. Não me faltava dinheiro para as roupas, para as "tertúlias" no Clube Maguari, para os livros. Um primeiro emprego, prometido a ele pelo Prefeito da época, fracassou. Com o tempo fui-me impacientando e certo dia procurei-o para dizer que pretendia tentar a vida numa cidade mais nova, talvez Goiânia. Perguntou-me porque não tinha paciência, pois dispunha de tudo aqui: casa, comida, afeto. Cedi aos argumentos, e fiquei. Pouco tempo depois surgiu o concurso no antigo IAPC e com ele o emprego. Com isso fiquei mais tranqüilo e pude caminhar para outros encontros definitivos em minha vida. Primeiro com a Clélia que ele "adotou" no dia em que a conheceu - e depois, com nossos filhos, o Leonardo, o Paulo, a Inês. Encontros esses que se desdobraram em outros que me presentearam com as boas noras e o bom genro que tenho e que me trouxeram os netos, esses que hoje, de certa forma e em certas horas, eu deixo que mandem em mim.

No Prontocárdio perguntou-me várias vezes quando nasceria o Felipe, meu neto mais novo. Queria ardentemente que nascesse no dia três de julho, data de nascimento de Sousa Girão, seu pai, por quem tinha uma espécie de veneração e a quem homenageava, todos os anos, com uma grande festa batizada por ele como "O Dia do Sousa", e a que compareciam seus irmãos tão queridos e demais descendentes desse homem que ele tanto amara. Não haveria o "Dia do Sousa" desta vez. Felipe nasceu no dia quatro, não deixando de lhe causar grande alegria, dentro da tristeza daquele julho.

Jamais houve comunhão mais perfeita em torno de um homem do que aquela que ocorreu em torno dele no Prontocárdio. Certo dia fez com que todos rezássemos de mãos dadas. Foi o paciente mais importante na minha carreira de Médico. Cuidei de seus problemas cardiovasculares por vinte anos. Confiava em mim e me fazia mentir, uma vez ou outra: eu lhe dizia que ia bem, mesmo quando não ia. Num momento de muita tensão, por ensejo de um infarto, fiz a indicação para o implante de um "marca-passo" cardíaco, realizado com muito carinho pelo Glauco Lobo Filho, neto de um daqueles amigos por quem ele rezava toda as noites. Marcapasso de demanda, isto é, para que entrasse em ação quando se tornasse completo o bloqueio cardíaco que apresentava. Só muito no fim, nos últimos momentos, veio o artefato a funcionar. As coronárias eram muito doentes mas o coração de meu pai era bom demais para se deixar comandar. De certa forma ele comandava, com o coração e com o espírito, todo um mundo de filhos, parentes, amigos, concidadãos. Senti naqueles dias de julho de 88 que o amor pode ser infinito, observando a dedicação de minha mãe - essa perfeição que se chama Marizot - e de meus irmãos. Mas também o amor de noras, genros, netos, parentes, compadres, amigos, um mundo de gente que adentrava o hospital e queria vê-lo, queria ouvir-lhe uma vez mais as estórias e as reminiscências, que tão encantadoramente sabia narrar, mesmo naquelas horas sofridas. Senti, como nunca, o valor da solidariedade de meus colegas médicos, chamados para ajudar-nos, a mim a ao Eduílton Girão, em muitas decisões difícies na longa trajetória dentro do hospital, rumo ao 24 de julho.

Na madrugada triste desse dia chamei o cirurgião João Evangelista Bezerra para decidir conosco se deveria ou não ser feita uma traqueostomia, numa tentativa de deter a evolução muito rápida da insuficiência respiratória que se instalara sobre várias outras insuficiências, e que predizia o fim. O João veio na hora, examinou, pensou, e concluiu, como nós outros, que aquilo seria apenas um tubo a mais, para algumas horas mais, ou dias, de sofrimento. Disse à minha mãe que aquele homem, que ela tanto admirava e estimava, não merecia aquele artifício. Pedi-lhe então que não se ausentasse de casa, pois achava que aquele era o último dia de meu pai e eu queria que ele viesse para retirar os catéteres e recompor-lhe a aparência de homem bonito, que sempre fora. Veio, entrou no quarto, e pôs-se a trabalhar como se fosse realizar uma cirurgia importante. Eu me continha lá fora, Deus sabe como. Voltei ao quarto e o João terminara. Fiz tudo o que você me pediu, Célio, mas fiz uma coisa a mais: quis ter a honra de ser o primeiro a prestar uma homenagem a esse grande homem, fazendo-lhe a barba.

O Parque da Paz fica ali no Passaré. Sim, aquilo já foi Passaré, pelo que aprendi, também com ele. De qualquer forma, mesmo no meu tempo de menino, aquilo era Passaré na prática. Não havia cercas, a minha espingarda belga, que me dera de presente, freqüentava aqueles campos. A paz morava no Passaré que ele às vezes chamava de "refúgio de minhas covardias". Passaré, esse belo recanto da natureza que meu pai burilou e transformou num pequeno paraíso. Pois logo ali adiante da casa-grande, na segunda-feira, 25 de julho, ele seria guardado, ao lado de um filho que perdera poucos dias antes, sem que o deixássemos saber. Ao lado de Celzir, outra saudade.

Nunca houve tanto silêncio de uma multidão como naquele dia no Parque da Paz. Diferente de outras despedidas que vi ali. Para lá foram dezenas de parentes, girões a brasis. Compareceram centenas de amigos e admiradores, dos mais humildes moradores do sítio aos mais bem situados na hierarquia social da cidade, hierarquia que não significava muito para os nossos valores, os lá de casa. Significou, sim, a solidariedade daquela gente toda. Aquele silêncio dizia bem alto que todos tinham ido ali para um derradeiro encontro com um grande homem.

Escrevendo este depoimento, experimentei em alguns momentos a sensação de que a saudade, embora não sendo sempre um sentimento de tristeza, pode ser profundamente triste. Pode doer demais. Igual a quando eu tento, no meu piano, passar das primeiras notas da "Valsa da Despedida", que ele tanto me pedia que tocasse. Não consegui ainda, neste primeiro ano de saudade. Espero voltar a tocar essa bela valsa, e estou certo de que a ouvirei mais bela ainda, pois ela agora se parece demais com meu pai. Será outra maneira de continuar conversando com ele.

Fortaleza, 24. 07. 1989.

(Publicado no livro "Raimundo Girão, o Homem (1900-2000)" , organizado por Eurípedes Chaves Júnior e Valdelice Carneiro Girão,. Fortaleza, Editora Gráfica LCR, 2000. 257 p.)

Célio Brasil Girão. Médico, Escritor, Professor da Faculdade de Medicina da UFC. filho primogênito do Historiador Raimundo Girão.