Luis de Sousa Girão - Raimundo Girão - um Autêntico Pioneiro Sócio-Cultural

Levantar os dados da vida e da obra de um grande especialista pode até não ser uma tarefa muito fácil. Mas, quando se trata de uma figura exponencial, como a do historiador Raimundo Girão, que dominava, praticamente, quase todos os ramos das Ciências Sociais, falar sobre ele -ai de nós - torna-se uma empresa verdadeiramente difícil, ou mesmo dificílima. Entretanto, como não é, de todo, impossível, só nos resta o privilégio de destacar, pelo menos, aquelas características que lhe deram notoriedade no meio sócio cultural em que ele viveu e trabalhou, deixando a grande maioria delas a cargo dos outros participantes desta obra que, com certeza, haverão de tratá-las com mais detalhes, à semelhança do que já foi feito pelo talentoso escritor, Dr. Eurípedes Chaves Júnior, no seu primoroso artigo O Meu Avô Raimundo Girão, inserido nesta coletânea biobibliográfica.

Na verdade, Raimundo Girão foi, realmente, um autêntico Cientista Social, que passou grande parte de sua existência a desbravar o mundo enigmático das verdades sociais. Observando criticamente os fatos ocorridos em nossa sociedade e contribuindo, de maneira efetiva, para a realização das mudanças na sua estrutura cultural, pôde ele afirmar, com toda convicção, as suas conclusões, tidas e havidas como irrefutáveis.

Sem esquecer as funções administrativas por ele exercidas no setor público e nas Instituições Culturais, esta figura emblemática da família Girão foi um legítimo pioneiro no mundo da história, geografia, antropologia, etnografia, genealogia, na lingüística a na literatura. Aliás, é sob o prisma facetado de algumas destas disciplinas que haveremos de focalizar a vida e obra deste "Heródoto" cearense.

PIONEIRISMO HISTÓRICO

Reconstituir cientificamente os fatos históricos ocorridos no Estado do Ceará, inclusive na sua capital - e até no Brasil - foi, indubitavelmente, a principal preocupação de Raimundo Girão como historiador. Embora aquele que se dedica à História não possa ser um homem isolado de sua época, meu irmão costumava, primeiramente, observar os fatos passados em nossa sociedade, com espírito crítico, distinguindo a realidade da aparência, não se deixando, nunca, influenciar pelos preconceitos de credo (embora fosse religioso), classe, sexo ou pela cor da pele.

Possuidor de um incrível cabedal de conhecimentos, especialmente das matérias auxiliares da História, Raimundo Girão foi, repito, um autêntico pioneiro nos meandros da Historiografia, indo além das montanhas dogmáticas da considerada oficial, para divisar novos e verdadeiros horizontes históricos. Na sua ânsia de pisar em solo novo e em harmonia com a verdade, seus olhos enxergaram além dos seus contemporâneos, desmistificando, assim, versões inconscientes das transformações na estrutura de nossa sociedade, em seus aspectos econômicos, políticos e de ideais sociais. Com os seus dados objetivos, conseguiu provar que o veio do conhecimento histórico não se esgota jamais e que as conclusões dos historiadores preconceituosos não são, muitas vezes, definitivas.

Sem a pretensão de fixar verdades absolutas, o historiador filho do velho Escrivão Sousa Girão, de saudosa memória, chegou à conclusão, baseado em verdadeiras fontes históricas, que a cidade de Fortaleza, a sua querida cidade adotiva, havia sido fundada, às margens do rio Pajeú e ao lado do Forte Schoonenborch, pelo flamengo calvinista Mathias Beck, embora "os fariseus", desesperadamente, pretendam negar este fato histórico, estabelecido através de provas incontroversas (ver Pequena História do Ceará, de Raimundo Girão - Coleção Estudos Cearenses / UFC, vol. I, ps. 54/55).

Mas a mania de rasgar novos horizontes históricos não parou por aí... Discordando das interpretações oficiais, o historiador Raimundo Girão sustenta, em sua obra, que o Brasil foi descoberto por Vicente Yañez Pinzón, que, de primeiro e em companhia de Diogo de Lepe, esteve "... nas areias aracatienses (Ponta Grossa)... e foi no Rosto Hermoso (Mucuripe), perto da embocadura de um pequeno rio (o Pajeú) que o corajoso espanhol, em fevereiro de 1500 (talvez dia 04) cavou o chão do Brasil e ergueu aos ventos americanos a cruz assinaladora de sua passagem". (Geografia Estética de Fortaleza - Coleção Alagadiço Novo / UFC, v 111, p. 23).

Diante dessas considerações, o historiador Raimundo Girão, um dos maiores do Estado do Ceará, recuperou fiel e integralmente fatos de nossa História, permanecendo, assim, o lusitano Martin Soares Moreno, "o Guerreiro Branco da concepção de José de Alencar", como fundador do Ceará (e não o de Fortaleza), enquanto que Pedro Álvares Cabral teria apenas tomado posse das terras brasileiras, em nome da Coroa Portuguesa.

PIONEIRISMO LINGÜÍSTICO

No seu inquieto afã de descobrir ou reformar o que deve ser reformado, questionando a sacralidade intocável da tradição enganosa, Raimundo Girão prosseguiu, sem desfalecimento, no seu inarredável bandeirismo cultural, abrindo novas trilhas, bem visíveis, não só no meio do matagal histórico mal interpretado, como através dos desertos estéreis das verdades apenas convencionais, que exercem um papel desarraigador de nossas origens e do nosso futuro radioso, como é o caso da gênese da Língua falada no Brasil, um país livre e soberano.

Se, como escrevi alhures, as forças irresistíveis da Natureza houvessem permitido, Raimundo Girão teria dado, talvez próximo às margens do Rio Pajeú, o seu "GRITO DE IPIRANGA LINGUÍSTICO" à semelhança do que fora feito por D. Pedro I, às margens do riacho Ipiranga. Lamentavelmente, quando estava prestes a desembainhar, pelos meios da comunicação, a implacável espada da palavra, a fim de iniciar, de maneira efetiva, aqui no Ceará, o processo de libertação da Língua Portuguesa, este ilustre membro da família Girão, que brilhantemente figura na lista dos vinte maiores cearenses de todos os tempos, foi levado pelas ordens silenciosas da Morte onipotente.

Pretendia ele, com este gesto heróico a indispensável, encerrar o que será, impreterivelmente "... o derradeiro capítulo do nosso emancipacionismo em relação a Portugal". Melhor do que ninguém, Raimundo Girão sentiu que "... pouco adianta continuar escondendo, através das artes diplomáticas a das sonsas delicadezas internacionais, o antagonismo latente entre lusitanos e brasileiros, que haverá de explodir zangado no campo da linguagem, no modo como ambos encaram a expressão pela fala ou pela escrita, dos seus pensamentos; Língua Brasileira versus Língua Portuguesa" (ver Revista da Academia Cearense de Letras - ano LXXXV - n° 41-1980, ps. 112 a 130).

Lamentando que o problema tenha sido equacionado de modo defeituoso, admite que "se se discutir a questão do idioma brasileiro à luz da ciência da linguagem, a nossa língua nacional haverá de ser reconhecida como dialeto do português ... o que, aliás, a filologia portuguesa de há muito reconhece" (Ob. cit., p. 115). De fato, sendo o dialeto brasileiro o idioma de um povo livre e soberano prossegue o nosso genial historiador, haverá ele de ser uma língua - a LÍNGUA BRASILEIRA. Para Raimundo Girão e muitos outros profissionais da linguagem, dialeto brasileiro é língua brasileira, tal como a língua portuguesa, com a independência de Portugal, a partir do século XIV, deixou de ser dialeto do galego (da Galiza).

Além do mais, quando os lusitanos trouxeram o seu idioma para nosso país, durante a colonização, aqui no Brasil, já eram faladas numerosas línguas indígenas. Naturalmente, com o decorrer do tempo, sofrendo também a influência, não menos significativa, dos idiomas africanos falados pelos nossos escravos e, posteriormente, das línguas dos imigrantes italianos, alemães etc., o idioma português foi se transformando tanto que, atualmente, o nosso é muito diferente do que é falado em Portugal, não só na pronúncia, como nas palavras usadas e na forma de construir a frase. Deste modo, não assiste a ninguém, nem mesmo às instituições elitizadas, o direito de continuar impondo ao brasileiro uma língua que não é a sua, seja ela, ou não, considerada "padrão ou dialeto de prestígio", principalmente porque quem faz a língua de uma nação que conquistou a sua soberania é o seu povo e não os gramáticos, com as suas regras copiadas, ou não. Neste contexto, pergunto se não seria de fundamental importância para a preservação de nosso idioma, o falado no Brasil, que se pusesse um "The End" nessa vassalagem lingüística de 500 anos, mormente agora, quando o idioma "inglês", dos Estados Unidos, está a invadir as escolas e faculdades brasileiras, bem como os nossos meios de comunicação, "... sem violência, através da diplomacia do dólar", como bem salientou o grande escritor argentino, José Ingenieros, em seu primoroso livro As Forças Morais.

E tem mais: para Edgar Sanches - como lembra o nosso ilustre historiador - "a língua brasileira nem é, a rigor, filha da língua portuguesa, ou um dos aspectos desta, mas sim, em essência, uma modificação do galiziano, galaico ou galego, falado no ex-Condado Portucalense, tanto quanto a modificação desse falar constitui a língua portuguesa de Portugal". (Ob. cit., p. 115).

Por que, então, pergunta Raimundo, o que se fala no Brasil não há de se chamar de brasiliense, quando os lusos puderam dar o nome de português ao corrente em Portugal; os castelhanos, espanhol ao seu latim? Teria sido - continua o mestre Girão - mais uma influência dos americanos do norte, que preferiram conservar o nome da língua inglesa ao seu idioma, ou conservamos o nome da língua portuguesa por inércia? Ou, quem sabe se isto não é a influência de uma mentalidade subjacente, adquirida em três séculos de colonialismo?

Para resolver esse dilema de linguagem, Raimundo Girão sugeriu que, por uma questão de amistosidade e até de justiça, fosse denominada de LÍNGUA BRASILUSA, a falada no Brasil, prestando, assim, uma homenagem à pátria de Camões.

PIONEIRISMO SOCIAL

Se, no passado, o desejo ardente da busca do ouro e de glória animava os desbravadores a enfrentar as adversidades e as intempéries, no decurso de suas árduas viagens rumo às regiões inexploradas, o pioneirismo de Raimundo Girão, por mais de meio século, enfrentando também os obstáculos e canseiras, jamais deixou de ser motivado pelo amor à verdade, ao devotamento à causa pública e, acima de tudo, "(...) tornar digna a sua qualidade humana, conseguindo pouco às vezes, às vezes completando-se".

Içando bem alto o estandarte das inovações sócio-culturais, o nosso "Heródoto" cearense, numa marcha sempre para a frente, tornou-se um homem de notoriedade e de imenso prestígio no seio de sua coletividade, pela importância dos serviços prestados a sua cidade adotiva, a cidade de Fortaleza, por ele imortalizada no seu poema - "Minha Cidade do Oceano Verde"; ao seu jus solis (Morada Nova) e ao seu Estado como um todo, razão pela qual o seu nome ressoa na memória dos outros e haverá de ecoar, merecidamente, como um exemplo para as gerações futuras.

Tantas foram as funções exercidas pelo escritor-polígrafo e homem público Raimundo Girão que é difícil falar abreviadamente sobre todas elas. Os fatos cronológicos de sua vida e obra nem sequer caberiam dentro deste pequeno trabalho. Assim, só nos resta um volver d'olhos sobre eles.

Nascido em Morada Nova, Ceará, em 03 de outubro de 1900, às margens do rio Banabuiú, Raimundo Girão ingressou no tradicional Liceu do nosso Estado, em 1915. Formou-se pela então Faculdade de Direito cearense e, já casado, pela segunda vez, com Maria (Marizot) Gaspar Brasil, um anjo feito gente, foi nomeado, por ato de 10.04.1933, assinado pelo Interventor Carneiro de Mendonça, Prefeito Municipal de Fortaleza, período em que mandou construir, dentre outras obras, a famosa "Coluna da Hora". Foi, ainda, Ministro do Tribunal de Contas local, Mordomo da Santa Casa, Presidente do Rotary Club de Fortaleza, por duas vezes, do qual foi um dos seus fundadores, Presidente do Conselho Penitenciário do Estado, Membro Diretor do Conselho Administrativo do Asilo de Mendicidade, Presidente da então LBA, no Ceará, Secretário de Urbanismo de Fortaleza, Secretário de Educação e, posteriormente, de Cultura do Estado do Ceará (a primeira do Brasil), da qual foi o seu criador e o primeiro titular, nela encerrando a sua alentada carreira pública.

Além dos títulos recebidos como Sócio Correspondente e Honorário de várias Instituições Culturais brasileiras, o escritor Raimundo Girão pertenceu, aqui no Ceará, dentre outras, ao Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico; à Academia Cearense de Letras, ocupando a Cadeira 21, que tem como patrono José de Alencar e à Associação Cearense de Imprensa, também como sócio efetivo.

PIONEIRISMO BIBLIOGRÁFICO

Na verdade, um pioneiro autêntico não pára nunca. Após uma conquista, começa outra; faz parte de sua índole. Se, no passado, foi assim que ocorreu com os desbravadores das regiões desconhecidas e selvagens, na busca de riquezas, dá para se imaginar a vida dos que transformam ou transformaram um bloco de mármore, num David, de Michelangelo; tinta a pincel, na misteriosa Mona Lisa, de Da Vinci; simples notas musicais, na nona sinfonia de Beethoven; vocábulos e eventos sociais, em livros, como os "Sertões" de Euclides da Cunha, todos eles, aliás, laborando um terreno impregnado de idéias convencionais. À semelhança daqueles, os pioneiros das Tetras, para a realização de suas aventuras, também necessitam derrubar as árvores dos velhos preconceitos e, nas clareiras abertas, têm que roçar o mato das concepções ultrapassadas, encoivarando as ramagens inúteis, para queimá-las com as chamas do seu talento e da sua imaginação.

Não pretendo afirmar que Raimundo Girão experimentou "o borbulhar do gênio" de que fala o grande poeta Castro Alves, mas eu tenho certeza de que ele foi tocado pela centelha que chispa quando o martelo da curiosidade intelectual fere a bigorna da criatividade humana.

A sua obra literária e científica é alentada, não restando a menor dúvida de que ela já entrou para o acervo cultural do Ceará e até do Brasil.

Depois de receber, em 1973, do Governo do Estado do Ceará, a Medalha da Abolição, "seu primeiro prêmio", inúmeras foram as outras medalhas com as quais foi ele agraciado, sem esquecer os troféus e títulos honoríficos que the foram outorgados, pelos serviços prestados à cultura, de um modo geral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para completar este pequeno trabalho sobre a vida e a obra de meu querido irmão Raimundo, é preciso que se diga, alto e em bom som, que ele era tido como uma figura exponencial da nossa família, estimado por todos os membros do c1ã dos Girões, cujas origens foi buscar na longínqua terra de Cervantes. Na verdade, a genealogia das famílias cearenses sempre fora motivo de preocupação de Raimundo. Da sua, especialmente, obteve, inclusive, informações de que os Girões procedem de D. Rodrigo Gonçalo de Cisneiros, que, vendo el-rei D. Afonso VI, um dos onze monarcas de Leão e Castela, a pé a na iminência de se fazer prisioneiro dos mouros, na Batalha de Toledo, cedeu-lhe o próprio cavalo, livrando-o. Antes, porém, de partir, o soberano cortou um girão do seu vestido, entregando-o ao autor daquela façanha, para que ele pudesse ser, depois de solto, devidamente identificado. O filho de D. Gonçalo, sucessor da casa paterna, foi o primeiro a usar o apelido pelo qual é conhecida a família, fundada, no Ceará, pelo português Antônio José Girão. Aliás, esta história nos foi contada pelo mano, em seu livro de genealogia Montes, Machados, Girões.

Assim era Raimundo... Amigo da família, dos amigos, bom filho, pai extremoso, marido exemplar, soube também, na condição de primogênito, manter os seus irmãos unidos, ligados pela "solda do exemplo e da saudade" do nosso querido pai, o velho e inesquecível Luís Carneiro de Sousa Girão que, no momento derradeiro de sua existência, ainda encontrou forças para pedir um "enterro mais simples do mundo, muita união".

Um dia, porém, o indomável pioneiro, que chegara a atingir o cume das grandes elevações do saber, para de lá das alturas alcandoreiras, descortinar um horizonte cultural mais grandioso; que atravessara as florestas densas da incompreensão humana; que subira, primeiro, rio-acima, a fim de encontrar as nascentes das verdades históricas, para, finalmente, atingir as águas cristalinas da beleza literária, este admirável mestre-de-campo, repito, permaneceu lúcido até que cessasse a sua respiração, o seu coração se detivesse em diástole e o encefalograma do hospital mostrasse a sua indesejável linha plana. Consultado, o relógio, que indica a inexorabilidade do tempo, marcava, 15h15min, do dia 24 de julho de 1988.

A oração que então se ouviu não foi, porém, a lastimosa dos agonizantes, mas tão somente aquela fervorosa de que um espírito de luz e de bondade subiu para o azul da eternidade.

E eu, com a minha alma genuflexa, revendo mentalmente a sua vida exemplar, o seu inigualável pioneirismo, fiquei a meditar, na convicção de que ele haveria de ressuscitar através de sua primorosa e gigantesca obra.

Felizmente, hoje, o historiador Raimundo Girão é nome de avenida, na capital do Estado do Ceará e... bem que merecia ser homenageado com um monumento evocativo, talhado no mármore ou vazado no bronze, numa das praças de Fortaleza que ele tanto amou!

Fortaleza, março de 2000.

(Publicado no livro "Raimundo Girão, o Homem (1900-2000)" , organizado por Eurípedes Chaves Júnior e Valdelice Carneiro Girão,. Fortaleza, Editora Gráfica LCR, 2000. 257 p.)

Luis de Sousa Girão. Escritor, serventuário aposentado da Justiça Estadual e irmão do Historiador Raimundo Girão.