Valdelice Carneiro Girão - Raimundo Girão - O Cidadão

Na Palestina, às margens do rio Banabuiú, próximo à cidade de Morada Nova, nasceu Raimundo Girão a 3 de outubro de 1900.

O recanto modesto onde nasceu, ele sublimou em seu livro de memórias: Palestina, uma Agulha a as Saudades: "Nasci na Palestina, na casa do tio Luisinho, tão simples de paredes de telhas e de chão, e a rústica mansão integrou-se nas minhas querenças, nas minhas recordações mais estremes e meigas".

Primogênito de Luís Carneiro de Sousa Girão - o Sousa - escrivão do Cartório do Crime e Júri de Fortaleza e Celina Cavalcânti Girão, a quem excedeu um amor filial documentado tão bem em Os Braços de Meu Pai, ou através da correspondência trocada com sua prima Dona Moça, após o falecimento de sua genitora e sua tia Felícia, primas-irmãs e amigas íntimas, em 1922.

Rui Montes Soares, em carta ao autor, classifica seu livro de memórias, como "uma mensagem de fé a otimismo (...) À exaltação do amor filial, da vida matrimonial, da ética e do altruísmo, do perdão e da renúncia".

O menino do sertão ao deixar seu habitat fez estágio na região serrana de Maranguape, para depois fixar residência na Capital litorânea, em 1913 - A Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, que ele também cantou e enalteceu.

Em palestra proferida na Casa de Juvenal Galeno, por ocasião do aniversário de fundação do Município, a interpreta como: "A princesinha criança do século 17 acha-se na plenitude feminil de 1954; mulher feita, integral nas funções, na forma a na formosura, no seu todo grácil de deusa da Fantasia, de Princesa imperante, confusamente imperante, como imperam no mundo confuso de agora todas as princesas".

Raimundo Girão amou Fortaleza, tanto como um filho muito amante.

Não esqueceu, porém, o seu torrão natal, a sua Morada Nova, exaltando-a quando tinha oportunidade de fazer. Ao discursar por ocasião do Centenário daquela cidade, em 1976, relembra: "O menino da Fazenda Palestina um dia seria arrancado desse embevecimento e iria para longe, com os pais forçados a tanto pelos desencontros do destino. Mas todos os anos com eles voltava em viagens lentas e cansadas, no desígnio, deles e meu, de reolhar os gados que deixaram, a fazenda que deixaram, os amigos que deixaram, e saudades que deixaram.

"E dessa forma, sentia eu, mais e mais, que me moradanovizava, sentia-me misturado aos encantos do meu sertão, do sertão dos meus avós, do sertão dos meus tios e primos que me recebiam carinhosamente (...) Relembro tudo: a gente, os bichos, os currais, as casas, os pátios largos e limpos, onde o gado pastava ou malhava tranqüilo, onde o vaqueiro intrépido derrubava bois e amansava potros bravos, e onde eu brinquei com os outros meninos (...) galopei vaidoso nos meus cavalos de talo, matei passarinho de baladeira, pratiquei as diabruras dos meninos impossíveis, sorri, chorei, era feliz".

Em suas análises histórico-sociológicas, feitas entre o homem do mar e do sertão, opinava que "os arroubos de admiração ao jangadeiro têm-nos levado à injustiça de esquecer o vaqueiro, a mais legítima configuração do homem sertanejo. E cabe-nos a nós todos, o movimento reparador para que a nossa omissão não concretize uma injúria".

E ele continuamente solidificou este movimento e prestou homenagens ao homem do campo, primeiro criando um Museu do Vaqueiro em Fortaleza, no período de sua estada como Secretário de Urbanismo do Município - museu desativado, após a sua administração; depois inaugurando um outro em Morada Nova, em pleno sertão da caatinga, região que se distingue pela característica mais acentuada - o criatório.

Visitar Morada Nova era motivo de alegria e encantamento. Visitava-a freqüentemente, até mesmo quando seu estado de saúde não era bom.

Julgava-se um homem realizado, e o foi. Intelectualmente, deixou uma vasta obra, na sua maior parte sobre a história do Ceará, compreendendo cinqüenta e três livros, dezoito participações em obras coletivas, dez organizações de obras históricas, quatrocentos e vinte e seis artigos em periódicos, quatrocentos e oitenta e seis artigos de crítica literária, prefácios e folhas soltas. Devem ser ressaltados os seus dois últimos trabalhos: Pequena Galeria Moradanovense, publicada em 1988. Segundo o autor, na introdução: "é destinada a mostrar, ou pelo menos informar nas linhas gerais, o quanto souberam - ou puderam - os retratados - honrar a terra em que nasceram (...). Por certo, a Pequena Galeria nada mais é do que o início de uma mais alentada... que irei preparar, a fim de que não haja exclusão de nomes que nunca poderiam ser deslembrados". O outro, Descrição da Cidade da Fortaleza (reedição do livro de Antônio Bezerra de Menezes, com introdução e notas de Raimundo Girão), há mais de um ano encontra-se no prelo da Imprensa Universitária aguardando publicação. Trabalho classificado por ele mesmo, muito importante para a historiografia da cidade.

Com toda essa bagagem intelectual, continuou modesto, pois não se julgava um historiador, no sentido da palavra, mas apenas um "aprendiz na história".

Solícito, amável e prestimoso, jamais negou prefácio de um livro, ou qualquer outra informação, fosse a um intelectual de renome ou a um iniciante nas letras.

Privilegiado em memória, discorria sobre História do Ceará, ou outros assuntos, citando nomes, datas a acontecimentos. Redigia com rapidez, precisão e ordem, a ponto de não usar borrões quando escrevia.

Organizado, sabia dividir as atividades de maneira a não prejudicar seus fins de semana no sítio Passaré que é assim analisado por ele: "a mansão que passou a ser - me digo sempre - o refúgio das minhas covardias: aí é que me protejo nas minhas evasões".

O seu paraíso terrestre.

Esse paraíso que ele dividia com um anjo de bondade - a sua Marizot, a menina-moça que conhecera em 1926, com apenas 16 anos, e se tornara a esposa e mãe exemplar. Somente aqueles que privaram do convívio desse lar são capazes de aquilatar a extensão da sinceridade das declarações feitas por ele durante as comemorações dos 50 anos de casados publicadas em folha solta: As Bodas: "Deus, o destino, a boa estrela, conforme queiram, trouxe a ternura de uma mulher, que seria a minha doce inspiração da estrada a que eu vinha pisando e seria uma voz, o meu conselho, a medida milimétrica dos meus atos, e procedimentos: uma verdadeira dádiva do Poder Divino."

Em 27 de novembro de 1987, comemoraram sessenta e um anos de paz conjugal, completando com uma prole de dez filhos, acrescidos de genros, noras, netos e bisnetos, num total de sessenta a dois membros que ele orgulhosamente comandava.

Seria, hoje 3 de outubro, dia de festa no Passaré, festejaríamos 88 anos de existência no nosso Girão. O bom Deus não quis que isso acontecesse, mas homenageamo-lo repetindo seu pensamento:

"A morte não é o seu aniquilamento.
Não morre o homem que em vida, pôde construir
obra útil...
Só se reduz ao pó do esquecimento do nada aquele
que passou pela existência sem qualquer coisa de
duradouro haver feito."
Raimundo Girão construiu obra duradoura e útil e jamais será esquecido
.

BIBLIOGRAFIA

(D. O. Letras - Ano III nº 12 - julho / setembro / 1988)

Valdelice Carneiro Girão. Historiadora, escritora, professora aposentada da UFC, membro do Instituto do Ceará e da Sociedade Cearense de Geografia e História.